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HISTÓRIA

A história do Laboratório de Fisiologia da Cognição se confunde com a história de seu chefe - Ricardo Gattass. Este é o memorial deste professor-pesquisador que é dedicado a sua esposa Cerli e a seus filhos Gustavo e Rafael.

MEMORIAL APRESENTADO NO CONCURSO DE PROFESSOR TITULAR (1986)
RICARDO GATTASS

ÍNDICE

1. O OBJETIVO E O ESTILO ....................................................….......................... 5

2. A FORMAÇÃO ACADÊMICA ............................................................................... 7
FORMAÇÃO BÁSICA
FACULDADE NACIONAL DE MEDICINA
EXPOSIÇÃO À CIÊNCIA
OS MESTRES, O MODELO E O LABORATÓRIO
A AVERSÃO À POLÍTICA NO MEIO ACADÊMICO
O AMOR À MEDICINA E À CIÊNCIA
DA POESIA DA CIÊNCIA À OBJETIVIDADE CIENTÍFICA
INGRESSO NA CARREIRA DE MAGISTÉRIO
O PÓS-DOUTORADO
A CURIOSIDADE, O DESCONHECIDO E O CANTO DA SEREIA
O LABORATÓRIO E O CRIADOURO DE PRIMATAS
O LABORATÓRIO, MEUS COLABORADORES E O NOVO MODELO
EXPERIMENTAL
UMA NOVA FASE - NOVOS AMIGOS E COLABORADORES
A VOLTA AO BRASIL

3. A PAIXÃO PELA UNIVERSIDADE .................................................................... 41
AMOR PLATÔNICO
FORMAÇÃO DE RECURSOS HUMANOS
A INFORMÁTICA E O FALSO PODER
O SONHO E A REALIDADE
A Unidade de Computação do IB/UFRJ
O LABORATÓRIO DE BIOELETRÔNICA
A OFICINA MECÂNICA DE PRECISÃO
O NÚCLEO DE INFORMÁTICA DO IBCCF
A TRILHA DE UM MODELO

4. A ADMINISTRAÇÃO UNIVERSITÁRIA E SEUS DESENCONTROS ................ 53
UMA VISÃO MAIS GLOBAL
Unidade de Computação
Departamento de Neurobiologia
Instituto de Biofísica
Programa Avançado de Neurociências
O Departamento que virou Programa

5. A CIÊNCIA ............................................................................................... 57
O TÁLAMO
UMA VISÃO COMPARATIVA
AS VIAS DE PROCESSAMENTO VISUAL E PERCEPÇÃO
O COMPLETAMENTO PERCEPTUAL
O COLÍCULO SUPERIOR E A ATENÇÃO VISUAL
AS VIAS DE PROCESSAMENTO NEURAL E A DOENÇA DE ALZHEIMER

6. A CIÊNCIA E A SOCIEDADE ...................................................................... 62
A "NUMEROLOGIA", UM ENTRAVE À BOA CIÊNCIA
O IMPACTO DESEJADO

7. CONCLUSÃO ......................................................................................... 67
O OUTRO LADO DA MOEDA

8. BIBLIOGRAFIA CITADA ......................................................................... 70

 

1. O OBJETIVO E O ESTILO

Ao ler memoriais de títulos de colegas que fizeram concursos antes de mim, notei não haver necessidade do uso de um estilo ortodoxo ou da elaboração de uma obra literária. Os memoriais em sua maioria são um relatório da carreira científica do candidato, contando parte da história da ciência na UFRJ e no Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho. No entanto, mesmo com o maior rigor científico, esses relatos, como nos evangelhos, podem ter enfoques diferentes daqueles feitos em memoriais anteriores. Em busca de homogeneidade, optei por um estilo simples e objetivo, em forma de crônica, com o qual descrevo episódios de minha carreira científica. Os relatos são expressões de minha visão particular da história do Instituto de Biofísica e da Universidade.
Com o objetivo de facilitar a avaliação dos diferentes aspectos da vida acadêmica e permitir enfatizar certos episódios de minha carreira científica, dividi este memorial em tópicos, que serão apresentados em uma sequência independente da ordem cronológica em que ocorreram.

2. FORMAÇÃO ACADÊMICA

FORMAÇÃO BÁSICA
É difícil precisar como ou por que ingressei na carreira científica e hoje procuro postos acadêmicos na Universidade. Passei minha infância e adolescência em Corumbá, Mato Grosso do Sul, tendo como modelos meu pai, um médico do interior que dividia seu tempo entre a clínica médica, a cardiologia e a cirurgia abdominal, e minha mãe, uma artista plástica que deixou verdadeiros monumentos em ferro, latão, madeira e telas.
Desde os primeiros anos aprendi com Dona Natércia, minha professora do primário, o rigor dos estudos abrangentes em seu conteúdo e profundos em seus conceitos. No Colégio de Dom Bosco fiz o ginásio, com sonhos de seguir a carreira de meu pai e voltar para clinicar em Corumbá. Meu desinteresse na época, o currículo defasado e os limitados recursos instrucionais de línguas estrangeiras fez com que eu chegasse ao Rio de Janeiro com um enorme déficit de aprendizado do qual me ressenti no início de minha carreira. Eu sabia muito bem o latim e o francês, mas tinha grandes dificuldades com o inglês.
Na minha infância e adolescência, foram poucas as oportunidades de interação com cientistas, mas nesse período, sem saber, fui exposto ao método científico, à sistemática na procura de novas opções e ao exercício da criatividade na ensolarada cidade de Corumbá.
Nasci no Rio de Janeiro por acaso. Meu pai, Dr. Fadah, havia terminado o curso de medicina no Rio de Janeiro e, recém-casado, chegou em Mato Grosso com minha mãe, em 1947. Logo ao chegar, viu a necessidade de ter melhores conhecimentos de tisiologia e radiologia, especialidades inexistente na Cidade Branca, Corumbá, atual "Capital do Pantanal". Foi durante a sua permanência no Rio, para o internato de radiologia, que nasci. Ao voltar a Corumbá, Dr. Fadah, como médico de família, fazia todas as especialidades, incluindo obstetrícia. Meu pai, seguindo exemplo de meu avô, foi inovador na introdução de novos métodos diagnósticos em Corumbá. Ele trouxe o primeiro aparelho de Raio X da cidade e fazia, no quintal de nossa casa, diagnósticos biológicos de gravidez.
Pelo que posso lembrar, foi na explicação deste método diagnóstico que tive a primeira aula do método científico. A observação do trabalho artístico de minha mãe, com a multiplicidade de técnicas que ela utilizava em suas obras, foi a primeira aula de conduta sistemática em busca da perfeição. Acho que foi de minha mãe que herdei o gosto pela ciência-arte e minha ojeriza à ciência-número ("numerologia" da ciência). Outra influência marcante de minha juventude foi a convivência com um artista espanhol, Sr. Burgos, e sua família, que chegaram a Corumbá fugindo da perseguição política do generalíssimo Franco. Com o Sr. Burgos e seu filho Pepito aprendi a ser criativo e improvisar para resolver problemas da vida cotidiana. Nesse exercício de criatividade fizemos um barco de 21 pés, moldes de gesso, e muitas engenhocas mecânicas e elétricas.
Ao terminar o ginásio vim para o Rio de Janeiro, para estudar no Internato São José, no Alto da Tijuca. Para um jovem livre e inquieto de Mato Grosso, os anos de Internato foram exercícios de disciplina e de sistemática de estudo, que valeram a minha colocação em 20º lugar no Vestibular Unificado CESGRANRIO. Isto me possibilitou ingressar na então Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil.

FACULDADE NACIONAL DE MEDICINA
Do saudoso prédio da Praia Vermelha, com seus jardins internos, sua biblioteca e seus majestosos anfiteatros, ficou uma lembrança agradável dos meus primeiros anos de faculdade, da monitoria de Fisiologia e de minha iniciação científica. Hoje, quando passo pela avenida Pasteur, sinto um grande pesar pela falta do culto à tradição e pela falta de visão dos Mestres que permitiram acabar com o prédio da Faculdade Nacional de Medicina e todos os símbolos a ele associados. Mas o espírito transformador da maioria dos professores da época, não só precipitou nossa mudança para a Ilha do Fundão como levou à mudança do nome da Universidade, infelizmente, antes de me graduar.
Apesar dos contratempos da época, a pujança e a riqueza do ambiente científico que pairava pelo já estabelecido instituto de pesquisa criado por Carlos Chagas Filho - Instituto de Biofísica - cativavam muitos acadêmicos.

EXPOSIÇÃO À CIÊNCIA
Ao ingressar na Faculdade Nacional de Medicina, fomos recebidos, na aula inaugural, por Carlos Chagas Filho, então Diretor da Faculdade. Em sua breve locução, ele falou do conceito acadêmico moderno (na época) que vincula a pesquisa ao ensino como a única forma de manter a qualidade nos cursos de Medicina. A pesquisa foi apresentada para mim, não com sua função de expandir os limites do conhecimento, mas como a única opção para a formação do docente. A ênfase era a de saber os métodos e conhecer suas limitações para poder interpretar os resultados obtidos, presentes sob a forma de dogma em livros-texto, veículos do conhecimento médico. Com o pouco contato que tive com o Dr. Chagas, aprendi que era mais importante saber o que não sabemos, do que o conhecimento em si.
Ao iniciar o curso de Fisiologia me inscrevi e fui recrutado por Izar Oswaldo Cruz e Antônio Paes de Carvalho para a função de Monitor de Fisiologia, começando assim minha iniciação à ciência. Com a Professora Izar, aprendi a desenhar e organizar práticas de Fisiologia com o rigor do método científico. Ao terminar o curso de Fisiologia, um grupo de estudantes monitores foi convidado a fazer um pequeno projeto científico em Fisiologia Cardiovascular, supervisionado por Paes de Carvalho.
O papel de educadora da Profª. Izar e sua capacidade de seleção de monitores merecem ser exaltados. Por exemplo, a maioria dos monitores selecionados por ela galgou postos acadêmicos na Faculdade de Medicina e instituições científicas, ou se tornou profissionalmente proeminente em seu campo de trabalho. Dentre os monitores de minha turma, por exemplo, lembro-me com carinho e saudades de Nádia Nogueira e Rafael Mira y Lopes, hoje trabalhando em um institutos de pesquisa nos Estados Unidos, de Maria Lúcia Fleiuss, professora da Faculdade de Medicina e de Waldinez da Silva, ex-diretor do Hospital da Lagoa e professor de Farmacologia da UERJ. Dentre os docentes do atual Departamento de Neurobiologia do IBCCF/UFRJ, meus colegas: Roberto Lent, Rafael Linden, Rosália Mendes Otero e Eliane Volchan também foram monitores de Fisiologia selecionados por Izar Oswaldo-Cruz.
Naquela época, meus planos para depois da Faculdade de Medicina eram claros e envolviam voltar para Mato Grosso como médico de família e cirurgião vascular ou cirurgião geral, para continuar a obra de meu pai. Foi para fazer companhia a Maria Lúcia, hoje Fleiuss de Farias, que me inscrevi no curso de Introdução à Ciência de Antônio Paes de Carvalho.
Estudando o efeito do íon magnésio no intervalo PR do eletrocardiograma em coelhos, fiz um projeto que mostrou que em altas doses de magnésio havia um pequeno aumento do intervalo PR e, ocasionalmente, observava-se um bloqueio átrio-ventricular na preparação de coração isolado.
Ao terminar o curso, procurei estágio no Laboratório de Eletrofisiologia Cardíaca de Antônio Paes de Carvalho. Como ele já havia feito sua seleção de estagiários, e tendo em vista a falta de espaço, sugeriu que eu procurasse estágio no "Laboratório dos Eduardos". Eduardo Oswaldo-Cruz e Carlos Eduardo Rocha-Miranda estavam voltando de Brasília e seriam meus professores no próximo bloco de Fisiologia: Neurofisiologia.

OS MESTRES, O MODELO E O LABORATÓRIO
Em março de 1968 procurei então o Prof. Eduardo Oswaldo-Cruz e manifestei interesse em acompanhar alguma atividade de pesquisa científica no laboratório que ele dividia com o Prof. Carlos Eduardo Rocha-Miranda. Ao chegar ao laboratório, com o entusiasmo de um mouro, mas com pouco preparo científico, encontrei o Prof. Carlos Eduardo Rocha-Miranda sentado ao microscópio, delimitando os núcleos talâmicos do gambá, o Didelphis marsupialis aurita. Na outra sala estava a figura séria de Raymundo Francisco Bernardes, que preparava cortes de cérebros embebidos em parafina. Eduardo me mostrou a sala de eletrofisiologia e me deixou lá para estudá-la. Com muita pretensão, por já ter utilizado uma preparação de Langerdorff, de coração isolado do coelho, comecei a analisar, com detalhe, os painéis dos aparelhos eletrônicos. Eu ainda tentava dissecar os painéis quando o Prof. Eduardo voltou dizendo que à tarde ia me apresentar aos estagiários do laboratório. Naquela tarde conheci duas estagiárias, alunas do curso que Eduardo e Carlos Eduardo ministravam na Faculdade de Psicologia da PUC/RJ. A figura simpática de Jansy, que preparava para análise fusos musculares de gambá e uma moça de pouca conversa, que estudava os protocolos de alguém que havia deixado o laboratório. Essa moça, que não podia ser interrompida na sua tarefa de localizar sítios de registro no complexo ventro-basal do tálamo do gambá, era Aglai Penna Barbosa de Souza.
Soube naquela data que havia um outro estagiário, Victor Zamora, que só encontrei uma vez no laboratório, e cujo apelido achei muito engraçado. Aliás, dentre os que eu chamava de "Mestres" (Eduardo , Carlos Eduardo e Raymundo Bernardes), Eduardo tinha um dom especial de cognominar os membros da equipe com apelidos sonoros ou engraçados. Lembro por exemplo de Zbu ou Bubu, El milonguero, Paulinho Cerebelo e Du Bois d'Arara para se referirem a Aglai, Victor Zamora, Paulo Mello e meu grande amigo Paulo do Espírito Santo Saraiva. Os Mestres eram capazes de criar uma atmosfera especial no laboratório, muitas vezes referido como "Torre de Marfim" ou "Meca", por seu Oliveira e pelo Prof. Gilberto de Oliveira Castro.
No laboratório acompanhei a preparação do artigo da anatomia do tálamo do Didelphis marsupialis aurita de Oswaldo-Cruz e Rocha-Miranda. Com Aglai e Eduardo iniciei minha produção científica, estudando o complexo ventro-basal do tálamo (xVB) do gambá, um núcleo talâmico que é o relé sensorial da sensibilidade tátil nesse mamífero primitivo. O estudo do processamento sensorial no xVB do tálamo era importante para a comparação dos mecanismos básicos da fisiologia sensorial no sistema somestésico (tátil). O gambá, um marsupial considerado um dos primeiros mamíferos (mamífero primitivo), parecia ser um modelo experimental ideal para a análise do processamento básico sensorial do tálamo. A comparação dos campos receptores do complexo ventro-basal revelou a existência de uma representação sensorial no tálamo e de unidades com propriedades muito semelhantes a dos mamíferos euterianos e primatas.
A participação nesse trabalho, que foi publicado em 1971, foi bastante enriquecedora, porque pela primeira vez participei do planejamento, da coleta de dados e da preparação de um manuscrito de um projeto científico. A companhia agradável de meus colaboradores e o rigor científico do Mestre Eduardo foram fatores importantes para o desenvolvimento da paixão pela procura sistemática do conhecimento. No preparo das figuras desse trabalho, aprendi a perseguir a perfeição e o trabalho completo. Uma vez, tentando terminar uma das figuras rapidamente, fui convencido por Eduardo a começá-la novamente, usando outro método que resultaria provavelmente num aumento de precisão de cerca de 2-3%. Eduardo nos ensinou que, para a comunidade científica (internacional), somos um reflexo de nossas publicações, e comumente a qualidade do nosso trabalho e de nossa reputação científica não é desvinculada da qualidade de nossas ilustrações.
No período de iniciação científica, o respeito e admiração pelos talentos dos professores fizeram com que os chamássemos de Mestres Eduardo, Carlos Eduardo e Raymundo. Dentre os Mestres, Eduardo Oswaldo-Cruz, com sua paixão pelo perfeito e pelo detalhe, foi o que mais marcou os primeiros anos de minha iniciação científica. Desse período me lembro vivamente das tardes de sexta-feira, quando Gustavo de Oliveira Castro (para muitos "Babinho", mas para Eduardo "O almoxarife") subia para o "pombal", para confraternizar, discutir ciência e política científica e jogar conversa fora. Na época, os meus modelos de cientista eram Mestre Eduardo, Dr. Aristides Azevedo Pacheco Leão, Carlos Eduardo, Antônio Paes de Carvalho e Gustavo de Oliveira Castro. Logo no segundo ano do meu estágio, Carlos Eduardo viajou para Harvard para trabalhar com Charles G. Gross, e perdemos contato até sua volta. A saída de Carlos Eduardo não só foi grande desfalque, mas desestruturou os planos do grupo de se transferir para a Universidade de Brasília. Após a viagem de Carlos Eduardo para os Estados Unidos, Jansy sai do laboratório e em seu lugar entra Roberto Lent.
Desse período lembro-me com saudades da atmosfera do laboratório criada por Eduardo, Aglai, Thais (irmã de Aglai, como secretária), Raymundo e Roberto Lent. No ano seguinte esse ambiente foi enriquecido com a chegada de Francisco María de Monasterio, de uma competência e sociabilidade imprevisíveis, e com as visitas ocasionais do Professor Paulo Saraiva.

A AVERSÃO À POLÍTICA NO MEIO ACADÊMICO
Desde que ingressei na Faculdade de Medicina, advoguei por uma Universidade de alto nível, com sistemas de avaliação de qualidade de cursos e de vida acadêmica. Essa visão platônica da Universidade era, e ainda é, incompatível com a politicagem e favoritismos feitos em função de grupos, de facções e de partidos políticos no meio acadêmico. Hoje, ainda me irrito quando estou tentando criar ou organizar algum sistema dentro do Centro de Ciências da Saúde e me aparecem com a pergunta, "mas és Pedetista ou Petista?", e eu tranquilamente, sempre respondo sou "UFRJista". Apesar dessa posição, em 1968, como muitos colegas, fui preso quando saia da sala de experiência para assistir a uma aula. Passei uma noite no DOPS e sai desnorteado e irritado com as atrocidades que a Sociedade estava permitindo que a ditadura fizesse. Levei mais de um mês para acalmar minha revolta e voltar a me concentrar nos estudos e no trabalho científico. Mas, apesar dessa experiência e da vontade descontrolada de reagir contra o sistema, não mudei em nenhum momento minha visão da Universidade, responsável pela formação de profissionais competentes, e que deveria estar desvinculada de qualquer facção política. Tenho a pretensão de almejar por uma Universidade que se preocupe com a formação técnica, social e política de seus alunos, e que não sofra as distorções presentes na atual comunidade brasileira.

O AMOR À MEDICINA E À CIÊNCIA
Durante o estágio de iniciação científica nos Laboratórios de Neurobiologia I e II, dividi meu tempo entre as experiências, as aulas básicas e a clínica. Com Raymundo Bernardes fotografei, e preparei todas as pranchas do atlas estereotáxico do cérebro do gambá, Didelphis marsupialis aurita.
Nesse período, preparava apostilas para a turma de Medicina e estudava as opções de estágio em serviços hospitalares. Como todo jovem eu achava ser capaz de fazer todas as atividades nessas três áreas. No afã de fazer medicina e ciência, não deixei de cumprir nenhuma atividade, mas nem sempre tive controle total do tempo gasto nessas atividades. Um dia, na ausência de Eduardo e Aglai, marquei uma experiência com o Mestre Bernardes para registrar unidades do complexo ventro-basal do gambá. Eu tinha uma aula das oito as nove horas no Hospital Moncorvo Filho, e combinei com Raymundo iniciar o experimento às nove e meia. Quando cheguei ao laboratório, o gambá tinha sido levado de volta ao biotério e o Mestre Bernardes estava com cara de poucos amigos. Depois de uma conversa macia mas num tom bastante seco, compreendi que minha meia hora de atraso havia cruzado a linha do aceitável. No mesmo dia, sem muita programação, peguei o animal para anestesiá-lo e iniciar o experimento, e já ali compreendi quão importante era a ajuda de Mestre Bernardes. Aprendi muitas coisas com essa figura de educação ímpar, habilidades técnicas inigualáveis e um jeito diplomático de tratar as pessoas. Mestre Bernardes, por sua contribuição para minha formação, com aulas diárias de fotografia, técnicas histológicas, mecânica, eletrônica e boa conduta, merecia um capítulo especial neste Memorial. Ainda hoje, relembro vivamente os artifícios usados por Raymundo para a montagem das pranchas do atlas estereotáxico do gambá, assim como os recursos de rebaixamento de emulsão e melhoria de contraste da imagem, que só o exercício de solução de problemas críticos pode oferecer. Em suma, com Mestre Eduardo aprendi a perseguir a perfeição e a ciência de qualidade, e com Mestre Bernardes aprendi como fazê-lo.
Em 1971, prestes a terminar meu curso de medicina, fiquei muito dividido entre o hospital de pronto-socorro e o laboratório de pesquisa. Havia sempre valorizado minha formação médica, e parecia estar na hora de pô-la em prática. Ao notar meu crescente interesse pela medicina, Eduardo sugeriu que eu entrasse logo para o curso de pós-graduação, mas pleiteei esperar mais um ano. Depois de algumas horas de conversa a equação mudou seus termos, e eu tive que escolher entre fazer a pós-graduação logo, tendo Eduardo como meu orientador, ou procurar outro orientador para o próximo ano. Decidi então ingressar na pós-graduação do Instituto de Biofísica.
Na festa de formatura recebi o prêmio UFRJ, dado aos dez melhores alunos da turma de Medicina de 1971. Mais tarde descobri ser muito difícil conciliar as duas profissões, e hoje tenho um profundo respeito por aqueles poucos que conseguem se desempenhar com perfeição nas duas áreas. Minha experiência em Medicina de Urgência e em Centro de Tratamento Intensivo no Hospital Souza Aguiar não só me deram um prêmio acadêmico, mas também a experiência e o conhecimento para bem tratar os animais durante os experimentos e em situações críticas.
Em 1972 iniciei oficialmente o curso de pós-graduação, já tendo feito inúmeros créditos em 1971. Na pós-graduação não só ganhei um título de Doutor em Ciências, mas ganhei também uma família. Foi durante o curso de pós-graduação que encontrei Cerli Rocha, que iniciava uma carreira na Biofísica no laboratório de Leopoldo de Meis. Cerli participou em todos episódios subsequentes de minha vida científica, aturando em casa a minha inquietude em busca de novas fronteiras da ciência. Cerli e meus filhos Gustavo e Rafael têm participado positivamente em minha vida acadêmica trazendo alento e inspiração nas horas difíceis.

DA POESIA DA CIÊNCIA À OBJETIVIDADE CIENTÍFICA
A falta de preparo e de experiência científica aliadas à diversidade de interesses nesse período fez com que os trabalhos iniciados com Francisco de Monastério e Roberto Lent não chegassem a termo. Com Roberto cheguei a apresentar o trabalho da coluna dorsal do gambá em simpósios nacionais. Éramos jovens iniciantes e não avaliávamos a todo momento, como hoje, o custo-benefício de cada atividade científica.
Com a volta de Carlos Eduardo, a mudança do laboratório para o segundo andar do edifício da Praia Vermelha e a incorporação do engenheiro eletrônico Major Roberto Oscar Brasil, iniciamos uma nova fase no Laboratório. Comecei a planejar minha tese, ainda sem orientador definido. Novos estudantes haviam se incorporado ao Laboratório, e Eduardo e Carlos Eduardo estavam fazendo o planejamento de novas metas para o mesmo. Comecei a discutir o plano de minha tese com Carlos Eduardo, e terminei sendo orientado pelo Eduardo. Carlos Eduardo orientava Francisco de Monastério, Leny Alves Cavalcante, e ainda tinha como estudante de graduação Rafael Linden. Eduardo, por sua vez, continuava a orientar Aglai, e tinha Roberto Lent como estudante de graduação. O início de minha tese foi a montagem de uma sala de experiência para estudos de campos receptores visuais em unidades isoladas, sala esta que hoje pertence ao Laboratório de Carlos Eduardo. Eduardo, por suas habilidades e seu perfeccionismo na área de instrumentação, fez com que eu iniciasse meu doutorado trabalhando com Major Roberto Oscar Brasil, para preparar uma nova sala de experiência. Com o Major Brasil aprendi um bocado de eletrônica e de processamento de sinal. Vivíamos em constante disputa, discutindo geralmente o sexo dos anjos. A convivência com o Major Brasil, com suas tiradas "lógico-ilógicas" muito engraçadas, desenvolveu uma amizade e companheirismo dos quais senti falta na volta de meu pós-doutorado, pois o "Major, Major" havia se transferido para a Universidade Federal do Ceará. O Major Brasil é o autor da "conclusão lógica" de que o que engorda é fazer regime. Segundo ele, na estatística que ele havia feito, cem por cento das pessoas gordas tinha feito regime.
As discussões e disputas com o Major Brasil me fizeram, numa das férias, estudar e fazer todos os exercícios do curso de eletrônica da época. Em outras férias, estudei lógica digital e arquitetura do minicomputador PDP-12 para poder ajudar a consertar o computador e discutir com aquela figura de personalidade turra, meu grande amigo Roberto Oscar Brasil. Levamos cerca de 18 meses para construir os equipamentos da sala de experiência. Esse tempo passei coordenando, preparando ou construindo os equipamentos e interfaces, com a ajuda de Oswaldo Costa e Franklin Lopes Soares. Em paralelo, discutia e ajudava Carlos Eduardo a testar os programas que vieram a compor o Sistema 2. A análise das interfaces e dos programas levou um tempo grande, que hoje não posso precisar. Nesse período desenvolvi um programa para analisar o EEG através da transformada rápida de Fourier.
Com a mudança do sistema de apresentação de estímulos visuais, os dados obtidos anteriormente tinham de ser convertidos para serem comparados com os do novo sistema. Com esse objetivo e com a ajuda de meu irmão Marcelo Gattass, deduzimos os algoritmos para a conversão de coordenadas visuais. O formalismo matemático destas conversões foi apresentado à Academia Brasileira de Ciências, e implementei os algoritmos em programa para a calculadora de mesa HP, para uso no Laboratório.
Finalmente, depois de tudo pronto, iniciei o estudo das unidades do núcleo pulvinar do macaco Cebus (meu projeto de tese). No segundo animal, cognominado de Roberto ou CB-O2, obtive ótimos resultados, que foram fotografados e documentados. Depois desse animal tivemos que mudar para a Ilha do Fundão onde, por um ano, fiz dezessete experimentos de 48 horas, sem nenhum resultado. Algo acontecia depois de três horas de experimento que fazia com que nós só registrássemos atividade cíclica e rítmica no tálamo. Foi só com a introdução de sessões crônicas, com estrita monitoração do C02 expirado e de outros parâmetros fisiológicos do animal, que voltei a obter resultados. Essa estrita monitoração incluía dormir no laboratório nos dias de sessões experimentais. Com a ajuda do Major Brasil, havíamos feito um sistema de monitoração eletrocardiográfica que acordava o experimentador na eventualidade de uma arritmia cardíaca. Jantar no laboratório, com comida trazida pela Dª. Joana, e dormir ao som do ECG do macaco constituem o lado poético da ciência.
Terminei minha tese de doutorado sob orientação do Mestre Eduardo Oswaldo-Cruz, mas não posso deixar de mencionar e agradecer a grande contribuição, nas discussões dos dados e opções de desenho experimental, do mestre e amigo Carlos Eduardo. A proposta inicial do projeto havia sido trazida por Carlos Eduardo quando voltou de Harvard. Ele e David Bender haviam discutido sobre o projeto que Eduardo, Aglai e eu decidimos fazer. Parte dos dados obtidos no pulvinar constituíram minha tese de doutorado, e ainda um trabalho sobre a topografia das projeções visuais no pulvinar do Cebus. O restante dos dados foi incorporado a dois outros trabalhos sobre a atividade unitária visual no pulvinar, e a outro sobre as unidades com respostas multissensoriais.
Os trabalhos do pulvinar foram inéditos em vários aspectos. O trabalho de topografia das projeções visuais mostrou, pela primeira vez, a existência de pelo menos duas áreas visuais no núcleo pulvinar. Ele foi o primeiro a demonstrar que essa subdivisão funcional não coincidia com a subdivisão anatômica proposta por Olszewski (1952). A existência de dois mapas topográficos no pulvinar foi confirmada por David Bender (1981), muitos anos depois. O trabalho de unidades multissensoriais no pulvinar era inédito e foi o primeiro a propor que uma ou mais subdivisões do pulvinar poderiam servir de relé talâmico, responsável por filtros de seletividade atencional para estímulos visuais. Esta hipótese foi confirmada sete anos depois, por Stephen Petersen e colaboradores (1985). O trabalho que descreveu as unidades visuais do pulvinar do macaco foi o primeiro a mostrar uma série de tipos de unidade com seletividade à orientação, ao movimento e à forma. Células não orientadas e sensíveis à cor foram também descritas nesse trabalho. A existência de virtualmente todas as seletividades em células do pulvinar nos levou a postular a participação desse núcleo no sistema de atenção espacial visual.

INGRESSO NA CARREIRA DE MAGISTÉRIO
Em 1976 fiz concurso para Professor Assistente no Departamento de Neurobiologia do Instituto de Biofísica da UFRJ. Foi um concurso público onde, de forma muito desagradável, competimos Aglai, Roberto Lent e eu, por duas vagas. Éramos amigos, colegas de trabalho, e eu estava terminando de ensiná-los a dirigir quando saiu o Edital do concurso. Nesse concurso todos fomos aprovados sendo Aglai em primeiro lugar, eu em segundo e Roberto em terceiro. Através desse concurso ingressei na carreira de magistério na UFRJ, pois até então era um Auxiliar de Ensino, da tabela temporária, contratado pelo convênio MEC-DAU.

O PÓS-DOUTORADO
Por sugestão de Carlos Eduardo escrevi para o Prof. Charles G. Gross, à procura de um estágio de pós-doutoramento no exterior. Carlos Eduardo havia trabalhado com Charles Gross e David Bender na Universidade de Harvard em Boston, MA. Charles Gross havia se mudado para Princeton, N. J. e David Bender que estudava o pulvinar do Rhesus estava com planos de se mudar para Buffalo, N.Y.
Aceito pelo Prof. Charles Gross, cheguei a Princeton com ideias de estudar o pulvinar em animais acordados, em condicionamento operante. Ao chegar, sem o domínio da língua inglesa (conhecendo 900 frases!), mas com muita vontade de trabalhar, comecei a discutir as opções de trabalho com o Prof. Gross. No início era uma conversa surrealista, parecia mesmo conversa de surdos. Eu apontava para meus interesses no pulvinar e ele falava do córtex cerebral.
Logo notei que estudos do pulvinar eram considerados como projetos de David Bender e que eu teria de optar por outra área de interesse. Comecei a rever a literatura sobre as áreas visuais do córtex do macaco e estudar o que poderia ser feito no Laboratório do Prof. Gross. O Laboratório estava mudando de sistema de computação. Eles haviam aposentado o PDP-12 e estavam começando a programar as interfaces do Laboratório com o novo PDP-11. Era necessário interfaciar e escrever, ou contratar alguém para escrever, o programa de aquisição de dados e controle do comportamento. Eu havia terminado o interfaceamento do PDP-12 no Brasil e construído o laboratório de eletrofisiologia, e não me pareceu justo começar tudo de novo. Eu havia gasto cerca de seis anos no desenvolvimento do sistema com Carlos Eduardo e Major Brasil, e resolvi olhar para outra direção. Comprei um hemisfério de acrílico e, de forma bastante objetiva e rápida, desenhei e construí um sistema para mapeamento de campos receptores visuais no córtex do macaco. Depois de três meses em Princeton, iniciei a fase experimental do estudo da definição da localização, extensão e topografia da área V2 do macaco. Havia uma confusão na literatura sobre a localização de V2 no Macaca. Allman & Kaas (1974) no Aotus haviam proposto que V2 fosse coexistente com a área 18, enquanto Zeki (1969) havia proposto não haver relação entre a extensão da área V2 no Macaca e a da área 18 proposta por Broadman. Zeki (1978) havia estudado os 6 primeiros graus da representação do hemicampo inferior de V2 do Macaca e propôs que a divisão funcional em áreas visuais deste animal não coincidia com nenhuma divisão arquitetônica até então descrita.
Com Julie H. Sandell e Charles Gross, iniciei o estudo da área visual secundária do Macaca. Julie era uma estudante de graduação do Departamento de Psicologia de Princeton, e foi a minha primeira orientanda. No processo de estudar V2 ensinei eletrofisiologia e orientei a tese final do curso de Psicologia (Doc. 19.6) da Universidade de Princeton (Senior Thesis). Deste projeto resultou o trabalho que descreveu, pela primeira vez, a extensão e os correlatos mieloarquitetônicos da segunda área visual do Macaca. Descrevemos também a topografia das projeções visuais da área V2, que se caracterizava como uma transformação topográfica de segunda ordem, como definida por Allman & Kaas (1974).
Com Charles Gross, estudei também a topografia das projeções visuais da área do movimento do sulco temporal superior. Devido à semelhança com a área MT descrita para o Aotus, denominamos esta área de MT do Macaca e descrevemos sua extensão e seus correlatos anatômicos. A existência de um mapa topográfico das projeções visuais nessa região definiu a área MT no Macaca como uma área visual, cujas características funcionais foram posteriormente descritas. Este estudo teve um grande impacto, sendo até hoje o mais citado de todos os meus trabalhos.
Ainda em Princeton, tive o prazer de colaborar com minha amiga e colega Aglai Penna Barbosa de Souza, no estudo da topografia das áreas V3 e V4 do Macaca. Assim, com Aglai e Charles Gross estudei o córtex anterior a V2 e descrevi a localização, os correlatos anatômicos e a topografia das áreas V3 e V4 do Macaca.
Até então Zeki (1978) havia estudado os campos receptores de uma pequena porção da superfície dorsal dessas áreas. Zeki, em diferentes trabalhos, propôs "não haver arranjo topográfico em V4" e haver "mais de uma representação do campo visual dentro da área"; propôs ainda que no sulco pré-lunato existiriam pelo menos duas áreas, a área V4 e a área V4A. Maguire & Baizer (1984) por sua vez, estudaram uma porção restrita do pré-lunato, e propuseram a existência de três áreas - V4t, AD e DP. Nosso estudo em V4 revelou haver uma única representação do campo visual em V4, com a representação do campo inferior na superfície dorsal e a representação do campo superior na superfície ventral, em uma porção do córtex até então não explorada. A correlação da área V4 com V4 e V4A de Zeki (1978) e AL de Maguire & Baizer (1984) só pôde ser feita superficialmente, dada à escassez de dados topográficos apresentada por esses autores.
Em Princeton, ainda orientei a estudante de pós-graduação Grayson Barber no estudo dos déficits comportamentais após lesão da área MT do Macaca. Pouco antes de deixar Princeton, terminamos o projeto que compôs o exame de qualificação de Grayson Barber; contudo, um desentendimento dela com o Prof. Charles Gross fez com que este projeto só fosse apresentado em congresso e nunca publicado de forma completa em revistas de circulação internacional. O projeto e os dados ainda hoje estão sob a responsabilidade de Charles G. Gross.

A CURIOSIDADE, O DESCONHECIDO E O CANTO DA SEREIA
Ao voltar do pós-doutorado, tinha planos de iniciar estudos com animais acordados nos quais eu pudesse ter um controle do comportamento do animal, podendo assim correlacionar mudanças na atividade elétrica de neurônios com mudanças do comportamento do animal. Os planos e a curiosidade científica eram sofisticados e complexos. Mas, depois de uma semana de conversas, ficou claro que, para pôr em prática meu plano teria que esperar por equipamentos e programar-me para poder fazer um projeto bem simples. Seguindo a orientação de Eduardo e Carlos Eduardo, meus primeiros pedidos de auxílio às agências de fomento à pesquisa foram bastante modestos. No primeiro mês ficou claro que eu não tinha temperamento para ficar de braços cruzados e que sendo membro do Laboratório de Eduardo, eu não deveria esperar grandes investimentos para a aquisição de equipamentos. Resolvi então partir para projetos eletrofisiológicos factíveis naquele momento, com os equipamentos existentes. Optei então por estudar o córtex visual do Cebus com o objetivo de estabelecer um modelo para o estudo de processos neurais relacionados à percepção. A falta de reconhecimento nos primeiros anos após minha volta do pós-doutoramento em Princeton fez com que tivesse meus pedidos negados por mais de uma vez. Eu achava que, por ter publicado trabalhos relevantes, ter produção científica continuada e estar propondo projetos interessantes e factíveis, deveria ter apoio das agências financiadoras. Nessa época eu dividia o escritório com Roberto Lent e Rafael Linden no módulo situado à esquerda da escada central do Bloco G do CCS. Roberto tinha sua mesa frente à porta, eu tinha uma mesa no meio do módulo e o Rafael no fim do módulo, próximo à janela. Ao receber uma segunda resposta negativa a um de meus pedidos, dei um chute na porta, o que fez com que Roberto passasse a receber continuamente uma corrente de ar que vinha do corredor. No mesmo dia saí para comprar outra porta, mas o troféu de "minha delicadeza" e irritação ficou exposto por semanas até que consegui um carpinteiro para substituir a porta.
A vontade de trabalhar e a curiosidade científica constante fizeram com que eu mudasse a estratégia de trabalho para incluir projetos anatômicos e eletrofisiológicos de áreas corticais visuais. O fascínio de revelar o desconhecido e uma forte atração pela ciência fizeram com que iniciássemos nossos estudos sobre a organização funcional do córtex visual de primatas.

O LABORATÓRIO E O CRIADOURO DE PRIMATAS
Ao voltar do exterior, reassumi minha posição de Professor Adjunto no Instituto de Biofísica, trabalhando no Laboratório de Neurobiologia I, sob a chefia de Eduardo Oswaldo-Cruz. Antes de voltar, havia conversado com Eduardo a respeito de continuar a trabalhar com primatas e ter linha de pesquisa independente. Ao chegar, fui informado de que a sublinha FINEP de primatas havia sido aprovada e que eu poderia selecionar um estudante de iniciação científica para começar a trabalhar. Iniciamos os contatos com os zoológicos e com o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), visando à obtenção de macacos. O que parecia simples inicialmente, tornou-se bastante complexo e burocraticamente muito complicado. O IBDF, usando de suas atribuições, proibiu captura de animais silvestres para uso em pesquisa, e obrigou-nos a instalar um criadouro de primatas no Instituto de Biofísica. Gradativamente, cumprimos todas as etapas para criar e tornar operacional o criadouro de primatas, de modo a termos um suprimento constante de animais para a pesquisa científica. Hoje, recebemos um suprimento constante de macacos Cebus machos dos centros de apreensão do IBAMA (ex-IBDF), além de animais excedentes de plantéis dos zoológicos de todo o Brasil. De forma muito especial fomos orientados e tivemos uma ajuda importante da Fundação Parque Zoológico de São Paulo. Foi graças ao veterinário responsável pelos primatas desse Parque Zoológico, Dr. Simão Faisal, que recebemos um conjunto de matrizes que têm mantido, por reprodução, o nosso plantel desde então. O apoio do Parque Zoológico de São Paulo tem sido até hoje muito importante para a manutenção do criadouro. Tivemos oportunidade de entrar em contato com vários diretores do Parque Zoológico e sempre tivemos o apoio dessa Instituição, graças, provavelmente, à presença constante de Simão Faisal, por quem temos grande respeito e amizade.
Resolvido o problema de suprimento de animais, voltei-me para a questão científica. Havia terminado os estudos eletrofisiológicos do pulvinar em animais anestesiados, e não parecia interessante voltar ao tálamo. Decidi então estudar a organização cortical desses primatas. Devido à sua abundância geográfica, o Cebus se tornou um modelo ideal para o estudo da organização do sistema visual de primatas.

O LABORATÓRIO, MEUS COLABORADORES E O NOVO MODELO EXPERIMENTAL
Um ano após minha volta de Princeton, o Prof. Eduardo Oswaldo-Cruz aceitou o cargo de Diretor da Casa do Brasil em Londres, Inglaterra. Antes de sua saída, ele indicou Aglai P. B. de Souza como responsável pelo Laboratório de Neurobiologia I do Instituto de Biofísica.
Desde 1968 tenho tido o prazer de trabalhar, participar de grupos de estudo e dividir atribuições no laboratório com minha grande amiga e colaboradora Aglai. Juntos reestruturamos o laboratório depois da saída do Prof. Eduardo, orientamos estudantes, serramos fileiras contra a burocracia do IBAMA e trabalhamos harmoniosamente em projetos de pesquisa. O trabalho experimental de cirurgias delicadas e de sessões experimentais longas foi sempre abreviado pela assistência orquestrada na cirurgia e pela conversa agradável e discreta na sala de experiência. Aglai é sem dúvida uma pesquisadora das mais sérias que conheço, com rigor científico muito apurado, com talentos e disposição, e quando motivada, suplanta a maioria dos colaboradores que tive até hoje. Aglai é também uma das pessoas mais objetivas, agradáveis e paradoxalmente, inflexíveis que conheço. A sua personalidade e inflexibilidade fizeram com que ela se afastasse da pós-graduação e da orientação formal de estudantes. Hoje, sinto-me culpado por não ter insistido ou contemporizado o suficiente para convencê-la a arcar com postos na pós-graduação, pois tenho certeza de que o seu engajamento nesta área resultaria em benefícios mensuráveis na estrutura do curso, além de beneficiar diretamente estudantes que passaram pelo Laboratório.
No ano de 1983, Aglai e eu selecionamos três estudantes de graduação para fazer estágio de Iniciação Científica no Laboratório. Dois eram alunos de Medicina que, depois de aprender um mínimo de neuro-anatomia e ter assistido à algumas sessões experimentais, foram dedicar-se à clínica médica. O terceiro estudante que ingressou em 1983 foi Marcello Gonçalves Pereira da Rosa, aluno do curso de Biologia. Marcello, desde o início, mostrou-se aplicado, extremamente objetivo e motivado. No dia que ele chegou, numa conversa introdutória, eu lhe disse que nós não fazíamos senão observar a regularidade dos eventos e fenômenos biológicos, e ainda que eu não sabia se era possível ensinar alguém a ser cientista. O que nós fazíamos era expor alunos ao trabalho científico, fazendo juntos com eles um projeto de pesquisa. Com esse procedimento, alguns alunos aprendiam e se tornavam cientistas competentes, enquanto outros iam seguir sua profissão inicial ou vender frutas na feira. Logo depois dessa conversa Marcello perguntou: "Qual é o fenômeno ou regularidade que nós vamos estudar?". Eu sem pensar muito respondi: "Vamos começar pelo começo, vamos estudar V1, a área visual primária do Cebus".
Na verdade, eu levei mais de uma semana para decidir o que nós iríamos fazer. Ao rever os dados disponíveis sobre a organização cortical dos primatas, notamos que muito pouco havia sido feito no Cebus.
O Cebus, por outro lado, apresentava vantagens marcantes entre os primatas disponíveis. Era um macaco do Novo Mundo, com distribuição abundante no Brasil, de hábitos diurnos e de tamanho e comportamento visual comparáveis aos dos macacos do Velho Mundo. O Cebus era portanto um modelo mais adequado para o estudo do sistema visual de primatas do que o macaco de noite (Aotus trivirgatus), que tinha um cérebro pequeno e lisencefálico, e tinha hábitos noturnos.
O Aotus era na época o macaco do Novo Mundo mais bem estudado. Joseph Allman e Jon Kaas haviam proposto em vários trabalhos um esquema de organização cortical com múltiplas representações do campo visual no córtex desse animal.
Nos primatas, a topografia da área visual primária já havia sido estudada no Macaca, e no Aotus. Delineamos então um projeto eletrofisiológico para estudar a topografia das projeções visuais, ou seja, a representação do campo visual na superfície da área visual primária do Cebus. Nosso desenho experimental visou estudar, em detalhes, a representação da periferia extrema do campo visual, até então não estudada, assim como analisar com grande precisão diversos pontos do mapa de V1. A descrição do mapa do Cebus, assim como da representação da porção extrema do campo visual foi inédita, porém, dentre os achados desse trabalho; o que teve maior impacto foi o da demonstração de anisotropias locais no mapa de V1, que sugeriam que este era composto por dois mapas locais, um para cada olho. Este resultado surpreendeu uma grande parte dos especialistas em córtex cerebral visual, pois eles acreditavam que o Cebus, como outros macacos do Novo Mundo, não possuía colunas de dominância ocular desenvolvidas na área visual primária.
Enquanto Marcello Rosa terminava sua graduação, selecionamos Mário Fiorani Jr. como aluno de mestrado na pós-graduação do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, e Maria Carmen Giraldez Pereira Piñón como estudante de Iniciação Científica. Um ano depois ingressavam no mestrado Marcello Rosa e Sérgio Tulio Neuenschwander Maciel. Estabelecemos novas equipes e iniciamos novos projetos. Aglai estava interessada nas conexões da área visual primária, Mário na topografia da área MT, Marcello na topografia de V2, Sérgio na topografia de PO e Maria Carmen na topografia de V4. Para mim sobrou o enigma da área V3. Os projetos e equipes se sobrepunham e tivemos um dos períodos mais ativos e produtivos do Laboratório. O objetivo era estudar, com a maior precisão, a organização do córtex visual do Cebus, procurando estudar de forma sistemática a organização topográfica da área. Nosso objetivo era o de delimitar e definir a extensão, os correlatos anatômicos e a organização topográfica de cada área.
Com Marcello Rosa e Aglai estudei a área visual secundária do Cebus. Descrevemos sua extensão e topografia e descobrimos que, localmente, o mapa de V2 apresentava maior anisotropia que o de V1.
No trabalho de V2, determinamos que a representação do campo visual em V2 tinha uma topografia de segunda ordem que fazia com que a distância de pontos correspondentes em V2 e V1 fosse praticamente constante a diferentes excentricidades. Um dos achados mais relevantes desse trabalho foi a descrição da anisotropia de V2, que seria compatível com a existência de módulos funcionais dispostos em bandas orientadas ortogonalmente ao bordo de V1 com V2. O modelo proposto nesse trabalho prevê compartimentos como os demonstrados com a reação para a enzima citocromo oxidase, e ainda compartimentos ao longo das bandas que seriam provavelmente relacionados com interações ou dominâncias binoculares. Até agora somente parte das previsões do modelo de V2 foram demonstradas. Ainda esperamos tomar conhecimento de novos módulos funcionais dispostos ao longo das bandas ricas em citocromo oxidase.
Com Mário Fiorani Jr., iniciei o estudo da porção dorsal do sulco temporal superior do macaco Cebus. Baseados nos dados obtidos em outros animais suspeitávamos de que deveria haver uma representação do campo visual coexistente com a zona de mielinização densa do sulco temporal superior do Cebus. Esse estudo difiniu a extensão e a localização da área MT do Cebus, assim como sua topografia. A definição eletrofisiológica mostrou, no entanto, que a área MT era mieloarquitetonicamente heterogênea, contendo uma região densa e uma região pálida (MTp). Diferentemente das áreas V1 e V2, não conseguimos definir nenhuma anisotropia nessa área, sugerindo que os módulos funcionais de MT teriam um arranjo não-regular ou randômico. Nesse trabalho Mário Fiorani Jr. mostrou seu talento, curiosidade e rigor científico. De forma discreta e introspectiva, desenvolveu ferramentas computacionais para estudar representações do campo visual dentro da área, e introduziu o uso de transformações reversas do mapa do córtex para o campo visual. O formalismo matemático e computacional determinou novos padrões de estudo da topografia de áreas visuais. Este trabalho definiu ainda as áreas MST, FST e DZ do Cebus.
Sérgio Neuenschwander chegou de forma muito tímida ao laboratório, para estudar a topografia das projeções visuais na área do córtex situada à frente de V2, no banco anterior da fissura parieto-occiptal do Cebus. Depois de muito trabalho, Sérgio deu uma contribuição importante na definição de duas novas áreas visuais, as áreas PO e POd. Antes de deixar Princeton, eu havia iniciado os estudos dessa área no Macaca com Helen Covey e Charles G. Gross. Apresentamos um resumo à Neuroscience Society no qual introduzíamos uma nova área visual que, por sua localização, denominamos de área PO. Em uma revisão de 1985, propusemos que essa área poderia ser composta por mais de uma área visual. Os dados desse trabalho ficaram com Helen Covey e Charles Gross, e só agora estão sendo preparados para publicação. Nesse ínterim, fizemos o estudo no Cebus, e o trabalho está sendo impresso na revista Journal of Comparative Neurology. Nesse trabalho definimos duas novas áreas visuais e propusemos que elas podem estar relacionadas com o processamento de fluxo centrípeto da informação visual que ocorre durante a deambulação.
Os trabalhos de V2, MT e PO, além de representarem trabalhos plenos de impacto na comunidade científica, constituíram teses de mestrado no Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho. O trabalho de V2 foi apresentado como tese de mestrado de Marcello G.P. Rosa. O trabalho de MT constituiu a tese de mestrado de Mário Fiorani Jr., e o trabalho de PO, tese de mestrado de Sérgio Neuenschwander.
Sérgio Neuenschwander mostrou-se bastante tímido, menos introspectivo que Mário, mas nos surpreendeu com sua objetividade científica, capacidade de trabalho, competência e dedicação. Na minha opinião, sua saída do Laboratório para um doutorado no exterior, em Paris, foi um pouco prematura, mas esse plano fazia parte do seu programa de vida.
Nosso trabalho de V1 no Cebus havia sugerido que o mapa de V1 era composto por dois mapas locais, um para cada olho. Trabalhos anteriores haviam mostrado a inexistência, nos macacos do Novo Mundo, de um arranjo colunar como o dos macacos do Velho Mundo. Intrigado com esse resultado, Marcello Rosa, após seu mestrado, mostrou-se interessado em estudar o arranjo colunar do Cebus. Enucleamos então o olho de um animal e, após uma sobrevida de sete meses, aplanamos o córtex visual primário e reagimos as secções tangentes para revelar o padrão de distribuição da enzima citocromo oxidase. Qual não foi nossa satisfação ao ver que os trabalhos anteriores estavam errados e que, de fato, o Cebus possuía colunas de dominância ocular semelhantes, às dos macacos do Velho Mundo. As colunas de dominância ocular eram dispostas em faixas que destorciam localmente o mapa de V1. Esses dados confirmam a existência de dois mapas locais, um para cada olho, como havia sido sugerido pelos dados eletrofisiológicos.
Maria Carmen Piñón já estava no laboratório interessada em fazer uma tese utilizando o método eletrofisiológico. Ela já estava trabalhando com Aglai, Marcello e eu em um projeto anatômico de estudo das aferências de V1, mas mostrou interesse em fazer um estudo da topografia das projeções visuais no Cebus. Eu havia começado com Marcello e Aglai a estudar a topografia de V3, porém as discrepâncias dos dados da literatura em relação a V3 fizeram com que escolhêssemos para Maria Carmen o estudo da topografia da área V4. Os dados da eletrofisiologia vieram confirmar que V4 é uma faixa do córtex que se estende da porção do giro pré-lunato na superfície dorsal até a superfície ventral do córtex. Esses dados vêm esclarecer uma confusão existente na literatura sobre a extensão da área V4. A análise precisa e sistemática desta área revelou uma discreta anisotropia na porção de representação central de V4. Esse dado sugere que os módulos de processamento da área V4 não têm arranjo regular na dimensão polar ou excêntrica do mapa. O trabalho de Maria Carmen e colaboradores será o primeiro a analisar a topografia dos módulos locais da área V4, utilizando algoritmos de interpolação e de transformações reversas.
Ao terminar o mestrado, Marcello Rosa ingressou no programa de doutorado do Instituto de Biofísica para estudar os módulos de processamento da área visual primária. Juliana Guimarães M. Soares, uma estudante de medicina, havia iniciado seu estágio de iniciação científica no Laboratório e veio se juntar à equipe, sob a co-orientação de Marcello Rosa. Na mesma época Marcos Marcondes de Moura entrou no programa de Mestrado, e procurou o laboratório dizendo estar interessado em estudar as áreas visuais do homem. Com Marcos estudamos a distribuição tangencial das zonas ricas em citocromo oxidase em preparações planas do córtex visual primário do homem. Para essas preparações, tivemos que orquestrar esquemas complicadíssimos de coleta de material e programar verdadeiras maratonas para dissecar e aplanar o córtex visual primário. Depois de preparações extremamente longas, o tamanho e a quantidade de lâminas de cérebro humano trouxeram obstáculos adicionais para o desenvolvimento deste trabalho. Um programa envolvendo coleta em São Paulo, processamento histológico no Rio e análise de dados em Brasília fizeram com que as equipes trabalhassem em esquemas poéticos e idealistas. Por muitas vezes Marcos saía de Brasília para um plantão de 24 horas em São Paulo, coletava o material, vinha de ônibus para o Rio, trabalhava por três dias (literalmente), sem sair do laboratório e voltava para Brasília com uma caixa de lâminas que pesava mais que um desses paralelepípedos usados para o calçamento de ruas. Marcos está na fase final de preparo de sua tese e é um exemplo de dedicação à ciência no confuso mundo de um profissional da área médica do Brasil de hoje. Os dados de Marcos vieram mostrar que as zonas ricas em citocromo oxidase (blobs) no córtex do homem são bem maiores que a de outros primatas por nós estudados (Saimiri e Cebus). Porém o número total de blobs é semelhante ao dos Cebus. Há portanto, um aumento de tamanho e uma diminuição proporcional de densidade.
Após as teses de Mestrado, Mário Fiorani Jr. e Marcello Rosa iniciaram quase que ao mesmo tempo suas teses de doutorado. Marcello decidiu estudar a organização funcional da área visual primária do Cebus. Mário e eu fazíamos parte da equipe. Num dos experimentos do projeto de tese de Marcello, com animal anestesiado, Mário insistiu em avaliar a resposta de ambos os olhos na região de representação do ponto cego. Já havíamos estudado a região de representação do ponto cego com registro multiunitário e era comum observar respostas pobres ao olho contra lateral. Esse achado estranho era sempre atribuído à imprecisão de mapeamento do ponto cego ou ao uso de registro multiunitário. Nos experimentos de Marcello estávamos utilizando o registro unitário, e nessas condições víamos respostas claras com campos receptores localizados dentro do ponto cego. Marcello continuou seu estudo eletrofisiológico e anatômico das colunas de V1, enquanto Mário resolveu deixar a área MT do Cebus e passar a estudar a representação do ponto cego em V1. O trabalho de Mário Fiorani Jr. tornou-se, a cada experimento mais interessante. Ao fim do projeto, os dados forneceram as bases fisiológicas para o fenômeno do completamento perceptual. Os dados eletrofisiológicos se relacionavam claramente com o completamento perceptual do ponto cego. Células na região de representação do ponto cego interpolavam a posição do estímulo com base na extensão do mesmo fora do ponto cego. O impacto e a repercussão desse trabalho foram grandes na comunidade científica. Por solicitação de várias audiências, eu apresentei-o no Helmholtz Club em Passadena, CA, na Universidade de Princeton, N. J., na Universidade de Rockfeller, N. Y. e na Universidade de Yale em New Haven, CT.
De todas as funções acadêmicas de que tenho participado, a investigação científica e a formação de recursos humanos são as que mais recompensas me deram. É com muito orgulho e satisfação que vejo meus colaboradores, ex-estudantes, disputarem um lugar ao sol na comunidade de neurociências. Julie Sandell foi a minha primeira orientanda e tem hoje mais trabalhos publicados que eu. É também com grande satisfação que vejo Marcello Rosa fazer um pós-doutorado bem sucedido, com muitas publicações e participando de um grande número de projetos na Universidade de Queensland, Austrália.
Tenho sido bastante rigoroso com meus alunos e colaboradores, para obtermos uma produção científica continuada e do mais alto nível. Tenho dito a todos que iniciam o trabalho experimental comigo que o trabalho eletrofisiológico é lento e complexo, que não nos traz publicações rápidas, mas que traz resultados importantes para a compreensão do processamento da informação visual no córtex. Tenho tentado ainda fazê-los entender que ninguém é reconhecido em neurociências pelo número de trabalhos publicados, mas que somos avaliados pela qualidade do trabalho que fazemos e pelas contribuições científicas que realizamos.

UMA NOVA FASE - NOVOS AMIGOS E COLABORADORES
Em meados de 1990, minha esposa que havia me acompanhado no pós-doutorado em Princeton, quis voltar aos Estados Unidos, agora para um pós-doutorado num local de sua escolha. Ela havia escolhido o National Institutes of Health (NIH) em Bethesda, MD. Decidi acompanhá-la e aproveitei este período para aprender novas técnicas de registro com animais acordados. No National Institute of Mental Health (NIMH) eu já tinha trabalhos em colaboração, desde 1979, com Leslie Ungerleider e Mortimer Mishkin, cientistas do NIH. Então pareceu natural trabalhar no NIMH para aprender novas técnicas de comportamento e registro, aquisição e processamento de dados de células nervosas em animais acordados. Era uma oportunidade ímpar de fazer alguns dos projetos aos quais me tinha proposto ao voltar para o Brasil em 1981. Propus-me então, estudar mecanismos de atenção visual espacial seletiva do núcleo pulvinar do Macaca. Ao chegar. comecei a trabalhar com Robert Desimone num projeto comportamental que visava o estudo do efeito da inativação do colículo superior na atenção visual espacial seletiva. Aos poucos, fui aprendendo como treinar um animal e fazê-lo prestar atenção em pontos específicos do campo visual. Aprendi ainda que, estando no laboratório de outros, nem sempre podemos fazer o projeto de pesquisa que desejamos. No período em que fiquei no NIMH, estudei células das camadas superficiais do colículo superior de macacos enquanto os animais faziam testes de atenção visual espacial. Decidi comparar a atividade das células em resposta a um estímulo nas seguintes condições: na primeira, o animal prestava atenção dentro do campo receptor; na segunda, prestava atenção em regiões fora do campo receptor. A diferença na atividade da célula em resposta a um mesmo estímulo físico nestas duas condições era devida à atenção. Utilizando testes de discriminação de cor, nos quais o local do primeiro estímulo sinalizava para o animal o local do campo visual em que ele deveria prestar atenção, observei um aumento na freqüência de disparo das células quando o animal prestava atenção no local do campo receptor. Assim, o colículo superior estaria participando de circuitos que fazem o gerenciamento da atenção espacial seletiva.
Ainda com Robert Desimone, estudei o efeito da estimulação elétrica das camadas superficiais do colículo superior no desempenho de animais que faziam testes de atenção espacial seletiva. O estudo revelou que a estimulação das camadas superficiais do colículo superior provoca uma modificação no foco espacial de atenção. Esses resultados eram contrários aos resultados dos trabalhos clássicos sobre colículo superior, que afirmavam que células de sua camada superficial participavam do controle do movimento ocular, e não tinham nenhuma modulação com a atenção do animal.
Com Mortimer Mishkin e Leslie Ungerleider, terminei os projetos anatômicos das conexões corticais e subcorticais de V2 no Macaca. Ainda nesse período estudei com Leslie Ungerleider, Robert Desimone e Jeff Moran as conexões subcorticais da área visual V4. Esses projetos vieram demonstrar que V4 recebia e enviava projeções a um número bem maior de áreas corticais e núcleos subcorticais. As conexões subcorticais de V2 eram restritas ao colículo superior e pulvinar, enquanto as conexões de V4 mostravam um padrão bem mais amplo que incluía o locus coeruleus, o núcleo da raphe, a substância reticular pontina, o núcleo pulvinar, o colículo superior, o putâmen e o núcleo caudato. Nesta nova experiência no exterior fiz grandes amizades, e fortaleci laços antigos de amizade com meus colaboradores de muitos anos.
Ainda no período de pós-doutoramento no NIH tive a oportunidade de colaborar com John Morisson e Zeth Kupherschmid da Mount Sinai School of Medicine no estudo da distribuição de uma proteína neurofibrilar de 32 quilodáltons, reconhecida pelo anticorpo monoclonal SMI-32, nas vias de processamento da informação visual. A importância desse anticorpo, o SMI-32, está relacionada ao fato de ele reconhecer proteínas presentes nas placas degenerativas de neurônios do sistema nervoso central de pacientes com doença de Alzheimer. Neste projeto, estudamos a distribuição de neurônios reativos ao anticorpo monoclonal SMI-32 em animais com injeções de corantes fluorescentes na área visual V4 e na área MT, áreas da via de processamento de forma e movimento, respectivamente. Nossos resultados mostraram que a via de processamento espacial e de movimento tem mais células com proteína neurofibrilar SMI-32. Este resultado se correlaciona com os dados do quadro clínico dos pacientes de Alzheimer que sofrem inicialmente déficits de memória espacial.

A VOLTA AO BRASIL
Em 1992, de volta ao Brasil iniciamos uma fase de reorganização do Laboratório para o registro em animais acordados e para a execução de novas técnicas neuro-anatômicas. Neste período, tive a ajuda agradável e competente de Edil Saturato da Silva Filho. Sempre disposto e de bom humor, Edil tem sido um técnico de laboratório capaz, hábil e eficiente. Novos estudantes de pós-graduação e de iniciação científica integraram o Laboratório nessa época. Juliana Guimarães M. Soares e Sheila Nascimento-Silva iniciaram seus mestrados; Joaquim Pereira Brasil-Neto, Paula Ventura e Otávio Sampaio Corrêa Mariani entraram para o programa de doutorado; Vanessa Rosadas Theme, Mariana Fleiuss de Farias, Luiz Felipe Gonçalves Azevedo Pary e Marcos Andre Pitta de Oliveira Guedes iniciaram estágio de iniciação científica no Laboratório.

3. A PAIXÃO PELA UNIVERSIDADE

AMOR PLATÔNICO
Desde o início de minha carreira científica, estive fascinado pela atmosfera da Praia Vermelha, com seu prédio imponente e sua biblioteca agradável. Os janelões altos da biblioteca davam um ar pitoresco àquele prédio que suscita memórias agradáveis. Comecei minha carreira na Universidade em 1967 como monitor de Anatomia, e depois em 1968 como monitor de Fisiologia.
Nesse período, o amor pelo envolvimento didático nas aulas práticas era suficiente recompensa por nosso trabalho. A cadeira de Fisiologia tinha duas vagas de monitor que foram dadas aos estudantes mais carentes. Como monitores não-remunerados, participamos de aulas práticas muito instrutivas sob a orientação da Profª. Izar Oswaldo Cruz e com a ajuda de Haroldo Camacho. Iniciei estágio no laboratório de Neurobiologia I em 1968 e não saí desde então. Em 1970 comecei alguns cursos na pós-graduação, porém ingressei formalmente na pós-graduação somente em 1971. Nessa época, devido a um convênio do governo MEC-DAU, os estudantes de pós-graduação sem vínculo empregatício foram incorporados na tabela temporária como Auxiliar de Ensino. Nessa época, já considerava a Universidade Federal do Rio de Janeiro minha casa e "vestia a camisa" do Instituto de Biofísica. Em 1971, passamos formalmente a ministrar cursos de Neurofisiologia para a Medicina e a Psicologia.

FORMAÇÃO DE RECURSOS HUMANOS
A vida acadêmica no Brasil é cheia de surpresas e muito mal remunerada. Depois de uma experiência inicial, os professores que não têm vocação para a ciência ou não fizeram voto de pobreza, abandonam a Universidade por atividades mais rentáveis. No entanto, o professor-pesquisador que tem um programa científico definido, tem na Universidade um terreno fértil para o desenvolvimento de seus projetos e para a formação de recursos humanos.
Dentre os nossos colegas, alguns almejam o reconhecimento científico pela comunidade, outros estão interessados em contribuir para a formação de recursos humanos, enquanto outros se divertem com a ciência que fazem. Pessoalmente, tenho procurado pautar minha carreira de professor-pesquisador com os objetivos mencionados acima, na ordem inversa em que foram apresentados. Tenho um programa científico definido para execução, talvez, nos próximos vinte anos, divirto-me com os projetos a ele relacionados e dou grande ênfase à formação de recursos humanos.
Nestes vinte e cinco anos de Laboratório, dei oportunidade a muitos alunos de participar em meus projetos, e aqueles que aprenderam tornaram-se professores-pesquisadores. Nesta lista incluo Julie H. Sandell, hoje professora do Departamento de Anatomia da Boston University, em Boston MA; Marcello G.P. Rosa, pesquisador do Vision, Touch Research Center, University Queensland, Austrália; Mário Fiorani Jr., Professor Visitante da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Sérgio T. Neuenschwander Maciel, Assistente de Pesquisa e pós-doutorando no Max-Plank Institute, Alemanha. Estão em fase final de sua formação Maria Carmen G. P. Piñón, Marcos Marcondes de Moura.

A INFORMÁTICA E O FALSO PODER
Como já dito anteriormente, meu pai viveu a implantação do Raio X como método diagnóstico no interior do Brasil. Ele comprou e instalou um serviço de radiologia em Corumbá, Mato Grosso do Sul. Depois de uma viagem ao Rio de Janeiro ele me convidou a visitar seu consultório, pois tinha acabado de comprar um tomógrafo, e ele queria dividir sua satisfação com algum membro da família. Ao examinar o aparelho, fiquei encantado com a mesa motorizada que tinha movimentos programados para fazer tomografia em vários planos.
Em 1967, ao entrar no laboratório de Antônio Paes de Carvalho, vi com muita admiração as montagens eletrônicas que mais pareciam painéis de controles de foguetes das aventuras de Júlio Verne. Quando cheguei ao Laboratório de Eduardo e Carlos Eduardo, já achei que o painel de equipamentos mais parecia com alguma sala de controle da NASA.
Nesses últimos 20 anos, vi novos métodos diagnósticos aparecerem: a ultra-sonografia, a ressonância magnética nuclear, a tomografia computadorizada e tomografia por emissão de pósitrons, mas nenhum desses chegou com a aura, ou sensação velada de controle de informação e poder da chegada dos mini e microcomputadores na sociedade.
Em 1969, voltava ao Brasil Carlos Eduardo Rocha-Miranda, trazendo o primeiro minicomputador para uso em pesquisa no Brasil, o PDP-12 da Digital Corporation. Nós carregamos o PDP-12 escada acima no saudoso prédio da Praia Vermelha, sob os olhares desconfiados dos calouros. Nessa época, o Major Brasil já fazia parte do laboratório "dos Eduardos", e foi encarregado de colocar a máquina para funcionar. Depois de três semanas de preparação da sala, de instalação de ar condicionado e de circuito de proteção e de aterramento, finalmente ligamos a máquina e vimos, com surpresa, o Carlos Eduardo mudar a posição de dois conjuntos de interruptores e acionar o botão de início de operação (Start 20). As unidades de fita magnética começaram a dançar de um lado para o outro e, finalmente, apareceu na interface do vídeo o sistema operacional Dial. O painel de console do PDP-12 era cheio de luzes pequenas, que na maioria das vezes pareciam estar todas ligadas. No primeiro dia o Prof. Carlos Eduardo colocou uma fita de demonstração, e todos nós ficamos fascinados com as potencialidades da "máquina". Mas ele foi logo dizendo que o sistema operacional não era bom e que nós iríamos usar um outro sistema baseado em fita magnética denominado LAP-6. Tudo parecia fantástico e muito complicado. Ele nos deu uns cartões de referência e manuais para ler que achei bastante confusos. Eu não conseguia entender que uma "máquina" que lia arquivos e executava programas era incapaz de fazer conta. O PDP-12 não tinha instrução de dividir e nem de multiplicar. O minicomputador não fazia de modo simples e preciso uma conta que qualquer máquina de calcular fazia direito.

O SONHO E A REALIDADE
O PDP-12 era um minicomputador cuja palavra tinha 12 bits, com memória de núcleo magnético de 4 Kbytes. Ao abrir o painel traseiro da máquina víamos um emaranhado de fios muito finos, que no início dava medo até de chegar perto.
Carlos Eduardo passava horas e dias em frente da máquina, escrevendo, editando e copiando programas. Ele ofereceu o curso "Introdução ao Minicomputador PDP-12" para o qual todos nós nos inscrevemos. Éramos um grupo entusiasmado de estudantes que resolveu estudar linguagem Assembler LINC para escrever programas e sistemas. No grupo de alunos tínhamos, entre outros, Francisco María de Monasterio, Rafael Linden, Walter Araujo Zin, Henrique Eizemberg, e Eliane Volchan.
Logo descobrimos que ao invés de ter mais poder de processamento com o computador, éramos na verdade escravos do PDP-12. Escrever um programa em linguagem Assembler era complicado, e geralmente essa atividade nos mantinha presos à máquina por dias e semanas, até que o programa passasse a funcionar. Iniciamos então uma maratona que levou cinco anos para terminar. Em 1973, terminamos o Sistema 2 e, gradualmente, voltamos a trabalhar primariamente em Neurociências.
Minha contribuição para a montagem do Sistema 2 é desprezível frente a de meus colegas previamente citados. Eu havia recebido a incumbência de montar uma nova sala de eletrofisiologia com o Major Brasil e, gradativamente, esta função se ampliou para montar um sistema de interfaces para o PDP-12. Esse envolvimento foi motivado por meu interesse em assistir ao Major Brasil na primeira vez em que o PDP-12 parou de funcionar. Houve uma pane em algum componente que fazia com que a unidade de fita magnética (LINC TAPE) não parasse de rodar. Por uma questão de curiosidade e companheirismo, acompanhei o Major na procura dos sinais nos diagramas lógicos do computador, que eram compilados em dois volumes grossos e grandes, onde cada folha tinha o tamanho de uma planta arquitetônica. Eu já passara semanas brigando com o Major Brasil a respeito de detalhes de montagem dos equipamentos que compõem hoje a sala de eletrofisiologia de Carlos Eduardo Rocha-Miranda. Pareceu lógico que, por companheirismo, eu tentasse estudar os diagramas para ajudá-lo a encontrar o defeito. Na primeira vez trocamos um número enorme de cartões e não conseguimos nada. Ficou claro que, por tentativa e erro, provavelmente levaríamos dois meses para consertar o computador. Voltamos aos diagramas lógicos para estudar mais. Carlos Eduardo, conversando com o pessoal da Digital recebeu instruções de como passar os programas de teste que vinham em fitas de papel. Entrávamos com um programa inicializador (Bootstrap) e depois deixávamos a impressora ler mecanicamente quilômetros de fitas de papel, e não conseguíamos ter nenhuma ideia clara do que estava acontecendo. Foi então que Carlos Eduardo resolveu testar, através do console, instrução por instrução do computador, e ler nas luzes do painel o resultado. Eureka!! Havia um conjunto de três instruções que não fazia mais o que devia. A partir daí foi fácil. Identificamos nos diagramas lógicos os circuitos envolvidos em cada instrução e, com o osciloscópio, monitoramos o sinal no painel traseiro do PDP-12 (o da centopeia). Depois de meia hora descobrimos que um sinal que devia mudar de estado não mudava. Abriu-se a outra porta e o Major trocou um cartão e nada aconteceu. Eu, que na época enxergava melhor que o Major, notei que ele havia trocado o cartão de cima e não o do conector do sinal. Então pedi licença e troquei o cartão certo e a unidade de "tape" voltou a funcionar. Na verdade, havia uma competição respeitosa entre nós, mas o mérito era todo do Major Brasil. O Major é uma figura que deixou o Instituto enquanto eu estava no meu pós-doutoramento em Princeton, e até hoje sinto falta de sua liderança na Instituição. Não sei quais foram os motivos dele ao deixar o Departamento, mas para mim, sejam quais tenham sido, acho que a perda humana e de capacitação técnica foi irreparável.
O Major é um engenheiro competente, bastante sistemático. Ele "espumava" quando eu queimava etapas para resolver os "galhos" do computador na frente dele. Lembro-me de um episódio que foi muito engraçado e que me valeu o posto nos anos subsequentes de Chefe da Unidade de Computação. Um dia, alguém ligou o computador sem ligar o ar condicionado (o ar estava quebrado) e, de repente, um banco de memória desapareceu. O PDP-12 era um minicomputador com 4 Kb de memória feito em núcleos de ferrite. O bloco de cartões de memória era sem dúvida uma das partes mais caras do sistema. Na minha ausência o Major havia diagnosticado o problema e dito ao Carlos Eduardo que nós só teríamos o PDP-12 funcionando quando recebêssemos um novo bloco de memória. O computador estava parado e muitos projetos científicos, inclusive o meu, teriam que sofrer grande retardo se a máquina tivesse que ficar parada até a chegada da nova memória. Foi então que eu disse no almoço do laboratório, na presença do Carlos Eduardo e do Major Brasil, que eu ia consertar a memória. Logo depois do almoço, peguei o bloco de cartões de memória para inspecionar e notei ser impossível desmontá-lo. Mas, passando o dedo nos diodos do cartão superior, notei que um deles estava rachado. Provavelmente, com o calor o diodo quebrou e interrompeu o acesso a um banco de memória. Eu soldei um outro diodo por cima do diodo quebrado e qual não foi a nossa surpresa, inclusive a minha, que tudo estava funcionando.
Com o Major Brasil e Franklin Lopes Soares, montamos equipamentos e interfaces que funcionaram até a desativação da Unidade de Computação em 1986. Os equipamentos da sala de experiência funcionam até hoje.
Nos vinte e cinco anos de Biofísica participei da criação de Unidades de desenvolvimento e de serviços que mudaram muito em sua trajetória.

A UNIDADE DE COMPUTAÇÃO DO IB/UFRJ:
A Unidade de Computação foi criada por Carlos Eduardo Rocha-Miranda para atender a quatro laboratórios de pesquisa, dois de neurofisiologia, um de fisiologia cardíaca e um de respiração e biomecânica. Fiz um grande esforço para instalar a unidade e torna-la operacional.
Desenvolvemos um sistema no qual cada laboratório recebeu um terminal remoto e acesso às entradas digitais e analógicas, a partir de painéis no laboratório.
Em 1980, a saída do Major Brasil deixou a unidade desassistida na manutenção do PDP-12. Além disso, a dificuldade de programação e a restrição de memória que tinha este equipamento fez com que investíssemos em sistemas baseados em microcomputadores que já haviam se tornado bem mais potentes e compactos que o PDP-12. Em 1986, por uma demanda de espaço, a Unidade foi desativada de forma errada, e as peças do PDP-12 espalhadas pelos subsolos do CCS.

O LABORATÓRIO DE BIOELETRÔNICA
A necessidade de desenvolvimento de instrumentos de controle e coleta de dados fez com que fosse criada, na gestão do Dr. Penna Franca, o Laboratório de Bioeletrônica e a Oficina de Eletrônica, como parte do Departamento de Neurobiologia. O Major Brasil, depois de seu mestrado no IME, passou a chefiar o Laboratório de Bioeletrônica e a ministrar os cursos de Medidas Elétricas e de Eletrônica para os alunos de pós-graduação do Instituto.
Participei da estruturação do Laboratório na Praia Vermelha e no Fundão, graças à grande amizade que tenho pelo Major Brasil. Ele formou duas gerações de engenheiros eletrônicos que desenvolveram projetos sofisticados e complexos para uso em neurociências. Maurício José Thurler Tecles, um dos engenheiros da segunda geração, chefia hoje o Laboratório de Bioeletrônica que, por desinteresse da Instituição, teve seu quadro reduzido, levando à extinção a Oficina de Eletrônica.
A Oficina de Mecânica de Precisão
Motivados pela necessidade de recursos de mecânica de precisão, Eduardo Oswaldo-Cruz e eu convidamos os Srs. Oswaldo Costa e Valdir Pereira para trabalhar na Oficina Mecânica do Instituto de Biofísica, também criada durante a gestão do Dr. Eduardo Penna Franca. Fiz os contatos, participei da escolha dos dois tornos mecânicos, peguei emprestada uma furadeira que estava na sucata da Farmacologia e participei ativamente nas negociações para o e empréstimo do torno de precisão do NPPN para o Instituto de Biofísica. Por dificuldades no Instituto, só conseguimos contratar Oswaldo Costa, que chefiou a Oficina na sua criação. O Sr. Oswaldo trouxe um garoto, seu assistente, Sérgio Nogueira Guimarães, que logo se tornou um profissional bastante competente. Mais tarde, Célio da Costa Coelho foi transferido do Laboratório do Prof. Ayres Fonseca Costa para a Oficina Mecânica, iniciando assim a fase de transição da oficina de precisão para uma oficina geral do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho.
Num pedido de auxílio individual ao CNPq, adquiri uma cortadeira e uma dobradeira de chapa, para facilitar a confecção de caixas de equipamentos. Mais tarde, quando voltei do pós-doutoramento no exterior, participei da fase de escolha de uma fresa mecânica.
Na gestão de Darcy Fontoura de Almeida, a oficina de precisão tornou-se uma oficina geral de manutenção, e teve incorporado aos seus quadros Arimair Rider de Oliveira Souza, no setor de refrigeração. Depois da seleção de Arimair afastei-me da oficina.

O NÚCLEO DE INFORMÁTICA DO IBCCF
Depois de minha volta dos Estados Unidos em novembro do ano passado, fui procurado pelo Diretor do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, Wanderley de Souza, para criar o Núcleo de Informática, com o objetivo de facilitar a comunicação entre os pesquisadores e a administração, e entre os pesquisadores e a comunidade científica mundial. Com Maurício Tecles e Geraldo Cidade, iniciamos projetos que já se concretizaram com a criação de uma rede local, que serve hoje a três laboratórios e à Administração do Instituto de Biofísica. A rede foi concebida para aceitar estações de trabalho e microcomputadores tipo IBM-PCs e Apple Macintosh. A rede já tem acesso à Internet-Rede Rio e dá acesso a qualquer estação de trabalho que esteja na rede, no país ou no exterior. Sua montagem e funcionamento devem-se, principalmente, à contribuição competente e responsável de Maurício Tecles, que instalou inicialmente uma rede Novell 3.11 para cinquenta terminais.

A TRILHA DE UM MODELO
Desde o início de meu doutoramento, tive o privilégio de conviver com Carlos Eduardo Rocha-Miranda. Sua visão sobre os assuntos urgentes da Neurofisiologia fez com que eu escolhesse estudar, em minha tese de doutorado, o núcleo pulvinar do Cebus, sob orientação de seu colega Eduardo Oswaldo-Cruz. A influência de Eduardo é maior que a de Carlos Eduardo para a minha formação científica; no entanto, o modelo de Carlos Eduardo é que tenho seguido em minha vida acadêmica. Como Carlos Eduardo, tenho tido um programa científico claro e coerente que visa a compreender os mecanismos corticais e subcorticais de processamento da informação visual. Nem sempre faço o que gostaria de fazer; faço o que pode ser feito na realidade da ciência brasileira.
Desde 1974, venho seguindo os passos de Carlos Eduardo em diversos cargos da Universidade. Em 1974, substitui Carlos Eduardo na chefia da Unidade de Computação Eletrônica. Em 1976, acompanhei Carlos Eduardo nos esforços de criação do NUTES e na instalação do Sistema de Avaliação Formativa por Computador. Em 1983, substitui Carlos Eduardo na chefia do Departamento de Neurobiologia. Com Carlos Eduardo Rocha-Miranda, Roberto Lent, Rafael Linden, Aglai Penna Barbosa de Souza, Leny Alves Cavalcante e Romualdo José do Carmo criei em 1986 o Programa Avançado de Neurociências da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 1988, substitui Carlos Eduardo na Coordenação do Programa de Neurociências. Em 1988 aceitei, no lugar de Carlos Eduardo ou por indicação dele, concorrer ao cargo de Vice-presidente da então Sociedade Brasileira de Psicobiologia, hoje Sociedade Brasileira de Neurociência e Comportamento. Com Juarez Aranha Ricardo, Luiz Roberto G. Britto e Emma Otta, foi eleito para um mandato de dois anos. Tivemos neste período o apoio de Carlos Eduardo para filiar a Sociedade à International Brain Research Organization (IBRO). Com Carlos Eduardo, participamos na criação da South American Brain Research Organization (SABRO), que visa a integrar as sociedades de Neurociências dos diversos países sul americanos.
Seguindo os passos de Carlos Eduardo, aceitei a posição de Presidente na chapa da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento.

4. A ADMINISTRAÇÃO UNIVERSITÁRIA

SEUS DESENCONTROS
Desde meu ingresso na pós-graduação, venho participando de órgãos deliberativos do Instituto de Biofísica. Em 1973, como representante dos alunos de pós-graduação, e mais tarde como Chefe de Departamento.
Na chefia de Departamento, tive a satisfação de criar dois novos laboratórios: O Laboratório de Neuroplasticidade, de Roberto Lent, e o Laboratório de Neurogênese, de Rafael Linden. Pudemos fazer a transição de chefia do Laboratório do Dr. Couceiro para a Dra. Leny Alves Cavalcante, e o do Dr. Gustavo de Oliveira Castro para mim. Assim, assumi a chefia do Laboratório de Neurobiologia III em 1985.
Ao final do mandato do Dr. Antônio Paes de Carvalho como Diretor do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, preparou-se a eleição de Carlos Eduardo Rocha-Miranda para este cargo. Nessa época, Wolfgang Pfeiffer e eu nos declaramos candidatos e nos comprometemos a ajudar Carlos Eduardo em sua diretoria. Carlos Eduardo retirou sua candidatura pouco antes da posse, e tivemos que reconsiderar todo o processo eleitoral. Depois de algumas reuniões, os chefes de laboratório do Instituto convenceram Darcy Fontoura de Almeida a dirigir o Instituto. Wolfgang e eu, que havíamos prometido colaborar com Carlos Eduardo, fomos convidados a participar da nova diretoria como vice-diretores. Fiquei na vice-direção do Instituto por dois anos. Em 1991 fui eleito novamente Chefe de Departamento, apesar de estar nos Estados Unidos. Em fins de 1992, assumi o Departamento com o objetivo de reorganizar o espaço e os recursos gerais. Estamos construindo um biotério externo, reformando os banheiros e reformulando os espaços de cada Laboratório.

UMA VISÃO MAIS GLOBAL
Nesses 25 anos de Biofísica, tenho tido uma postura que procura se afastar do casuísmo e se manter vinculada a regras e normas mais globais.

Unidade de Computação
Na Unidade de Computação, procurei oferecer a todos os laboratórios o mesmo acesso ao hardware e às ferramentas de processamento. As expansões eram sempre planejadas para não criarem nenhum desequilíbrio nos recursos oferecidos a todos os Laboratórios.

Departamento de Neurobiologia
No Departamento de Neurobiologia, procurei criar novos laboratórios com áreas equivalentes e recursos semelhantes. O crescimento do Departamento procurou atender às demandas científicas de cada Laboratório, respeitando-se a produtividade de cada grupo.

Instituto de Biofísica
Na Direção do Instituto procurei organizar os serviços gerais com regras negociadas, para manter o alto nível dos serviços, com boa produtividade. Estabeleci regras de horários e de prioridades de atendimento, que foram sempre negociadas, aprovadas e divulgadas. Fugindo de casuísmos e clientelismos, afastei-me da administração para trabalhar pelo recém-criado

Programa Avançado de Neurociências (PAN/UFRJ).
Programa Avançado de Neurociências
No PAN/UFRJ, tentei gerenciar recursos para o desenvolvimento da neurociência na Universidade Federal do Rio de Janeiro e fora dela. Com um programa de infra-estrutura, intercâmbio e criação de Unidades de multiusuários, fomos obter recursos nas entidades financiadoras. Nos primeiros anos pudemos criar as novas unidades e promover intercâmbio científico, que incluía enviar estudantes de pós-graduação a congressos internacionais. Esta flexibilidade na aplicação de recursos devia-se aos termos do convênio FINEP que fizemos sob a forma de Linha de Crédito.

O Departamento que virou Programa
Em 1992, ao voltar para assumir a chefia do Departamento de Neurobiologia, fui recebido pelo Diretor, que me disse que os Departamentos não mais existiam. O Conselho Departamental havia extinguido os Departamentos e aprovado a criação de Programas no Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho. Percebi que o Instituto estava passando por grandes mudanças, e que nesse momento de restruturação era necessário termos uma visão mais global da nossa instituição.

5. A CIÊNCIA

O TÁLAMO
No início da carreira científica, estudei a organização do sistema somestésico do gambá, Didelphis marsupialis aurita. O estudo do complexo ventro-basal do tálamo e dos núcleos da coluna dorsal foram projetos que visavam a descrever num mamífero primitivo, euteriano, o processamento da informação sensorial tátil. O estudo do complexo ventro-basal revelou que a organização e as unidades desse núcleo tinham propriedades semelhantes à dos mamíferos superiores.
A partir do ingresso na pós-graduação, escolhi um programa científico voltado para a análise do processamento visual em primatas. Inicialmente, esse programa focalizou áreas e mecanismos ligados à percepção visual e vias de processamento visual. Mais recentemente, o programa está se voltando para o processamento modular do córtex e fenômenos ligados ao completamento perceptual, à atenção e à memória visuais. No período de doutoramento, estudei o núcleo pulvinar do macaco Cebus, em preparações crônicas. Estudamos a topografia das projeções visuais com eletródios multiunitários, e as propriedades de unidades do pulvinar em resposta a estímulos visuais e multissensoriais. O estudo da topografia revelou a existência de duas áreas visuais no pulvinar. Este dado foi confirmado vários anos depois por David Bender (1981) no Macaca. Os estudos unitários revelaram a existência de unidades multissensoriais que provavelmente estariam relacionadas com atenção. Recentemente, Robinson & Morris (1987) descreveram, em animais acordados, efeitos modulatórios da atenção em unidades do pulvinar.

UMA VISÃO COMPARATIVA
No estágio de pós-doutoramento em Princeton, iniciei o estudo de áreas corticais visuais no Macaca. Com esses estudos, defini a localização, a extensão e a topografia das projeções visuais das áreas MT, V2, V3 e V4 do Macaca. Iniciei em Princeton estudo da área PO, projeto que ainda está em andamento.
De volta ao Brasil, optei por iniciar o estudo do sistema visual do Cebus apella, um primata do Novo Mundo, com distribuição abundante na América do Sul. Os estudos da organização cortical do Cebus eram factíveis com a tecnologia e equipamentos que já tínhamos, e traria dados importantes sobre a organização comum de primatas do Novo e do Velho Mundo, que foram separados há cerca de quatro milhões de anos. Caracteres comuns a dois primatas diurnos de tamanho e hábitos semelhantes teriam evoluído de um ancestral comum a esses dois primatas. No Cebus definimos a localização, extensão, correlatos anatômicos e topografia das projeções visuais de V1, V2, MT e PO. Mais recentemente estamos descrevendo as áreas V3 e V4.
A semelhança da organização cortical do Cebus e do Macaca sugere que tenha existido um ancestral comum de pequeno porte que já tinha definido o padrão geral de organização das áreas corticais, e que a partir desse ancestral tenha ocorrido evolução paralela nos dois animais. Esses resultados sugerem que fatores ambientais e nicho ecológico podem explicar diferenças entre a organização cortical do macaco-da-noite, Aotus trivirgatus e do macaco-prego, Cebus apella.

AS VIAS DE PROCESSAMENTO VISUAL E PERCEPÇÃO
Nossos trabalhos de conexão de áreas corticais e de topografia das projeções visuais sugerem que no sistema visual a informação seja processada pelo menos por três vias. A via ventral, responsável pelo processamento de forma, cor e textura; a via dorso-medial, responsável pelo processamento espacial ligado à locomoção; e a via dorso lateral, responsável pelo processamento do movimento.

O COMPLETAMENTO PERCEPTUAL
No curso do trabalho de mapeamento da área visual primária do Cebus, deparamos com um novo fenômeno que sugere que o processamento cortical pode sofrer ajustes dinâmicos dependentes do contexto da imagem. Este fenômeno de completamento perceptual é o responsável por não percebermos zonas cegas no campo visual quando olhamos o ambiente com somente um dos olhos abertos. As regiões desprovidas de receptores, como o ponto cego, e as regiões mascaradas por vasos retinianos não são percebidos pelo indivíduo graças a um mecanismo automático de preenchimento perceptual. As zonas cegas são preenchidas pela textura, cor e padrão do fundo.

O COLÍCULO SUPERIOR E A ATENÇÃO VISUAL
Meus estudos das camadas superficiais do colículo superior em animais acordados e em comportamento operante mostram que o colículo superior pode estar envolvido no gerenciamento de atenção visual espacial automática, enquanto a área visual V4 estaria mais envolvida em atenção visual espacial cognitiva. Meus estudos de registro de células da camada superficial do colículo superior mostram que a resposta da célula a um dado estímulo físico é potencializada quando o animal está prestando atenção no ponto do campo visual onde está o estímulo, e não se altera quando o animal está prestando atenção em outro ponto do campo visual.
Meus estudos com microestimulação das camadas superficiais do colículo superior demonstraram que a estimulação elétrica de um ponto da superfície do colículo move o foco de atenção espacial para o ponto do campo visual correspondente ao local de estimulação. Esses estudos confirmam a participação do colículo no gerenciamento da localização do foco de atenção.

AS VIAS DE PROCESSAMENTO E A DOENÇA DE ALZHEIMER
Finalmente, utilizando um anticorpo monoclonal, o SMI-32, que reconhece neurofilamentos presentes nas placas neurais de pacientes com doença de Alzheimer, nós descobrimos haver um maior número de células com esses neurofilamentos em animais adultos normais nas áreas da via de processamento dorso-lateral. Esse resultado se relaciona com a incidência de perdas de memória espacial nos estágios iniciais da doença, sugerindo que as células marcadas com SMI-32 seriam mais suscetíveis a desenvolver placas degenerativas da doença.

6. A CIÊNCIA E A SOCIEDADE

O homem tem procurado encontrar o seu lugar no Universo através da Ciência. Paradoxalmente, hoje no Brasil estamos muito preocupados em achar o lugar da Ciência na Sociedade. É triste ver a falta de opções que estamos vivendo hoje, com recursos virtuais sendo alocados para o Ministério de Ciência e Tecnologia - recursos do Fundo 188 são um exemplo.
Estamos vivendo uma era de avanços científicos e tecnológicos que desafia qualquer das décadas passadas. O volume de conhecimento acumulado cresce geometricamente em países com uma distribuição adequada de recursos para a ciência. Neste quadro, as restrições orçamentárias do Brasil estão fazendo com que os laboratórios parem suas atividades devido a uma escassez de recursos nunca vista. O governo passado, que felizmente foi deposto, havia decidido destruir as Universidades Federais e sua política científica, era certamente capaz de fazer com que a sociedade no Brasil voltasse a ser uma sociedade agrária. Felizmente, ficamos livres daquele governo e estamos a espera de novos ventos.
Desde o início de minha carreira tenho mantido uma postura acadêmica e responsável perante a Sociedade e os meios de comunicação. De forma discreta e comedida, tenho procurado esclarecer a opinião pública sobre os objetivos de nosso trabalho, em entrevistas ao vivo na televisão (Sem Censura, 1988), em programas científicos da televisão (A Ciência na Universidade, 1989) e em artigos de revistas de divulgação científica e de jornais (vide Curriculum Vitae).
A "NUMEROLOGIA", UM ENTRAVE À BOA CIÊNCIA
As dificuldades inerentes ao julgamento de qualidade do trabalho científico e a escassez de recursos fizeram com que evoluíssemos para uma situação em que as agências de fomento à ciência passassem a usar critérios "numerológicos" para distribuir recursos a grupos de pesquisa. Em última análise o cientista é avaliado pelo número de trabalhos publicados e não por sua contribuição científica ao conhecimento. Esses critérios não são, no entanto, aceitos pela comunidade científica internacional. Ninguém ganha um prêmio Nobel por sua produção numérica. Cientistas são reconhecidos pelos seus programas científicos e recebem créditos por trabalhos (projetos) específicos. Mais que nunca, é a qualidade e o impacto da contribuição científica que valem. Cientistas que usam uma técnica para explorar vários modelos em projetos estanques têm sido muito valorizados em nosso meio, mesmo sem terem um programa científico definido ou uma área em que são reconhecidos internacionalmente.
A dificuldade na avaliação do trabalho científico é ainda agravada pelas peculiaridades de cada modelo experimental e das publicações de cada área. Projetos em neurofisiologia são normalmente mais arriscados (imprevisíveis) e mais longos que os de neuro-anatomia. As publicações de definições de áreas corticais são usualmente longas e são acompanhadas de mais ilustrações que a maioria das publicações de outras áreas da biologia.

O IMPACTO DESEJADO
Eugene Garfield (1990), em uma análise sobre os índices de citação, feita em artigo do Current Contents de fevereiro de 1990, revelou que cerca de 60 a 70% dos artigos da área biológica nunca são citados, e que cerca de 80% não são citados por outros autores. Nesse artigo, Garfield comenta que compeões de citação são geralmente artigos que descrevem uma técnica que se tornou comum numa área da ciência.
Sem dúvida, a melhor avaliação de um cientista é feita por seus pares, dentro de uma mesma área do conhecimento. Neste caso, é fácil reconhecer a contribuição individual de cada trabalho para a área do conhecimento, assim como identificar contribuições significativas para a determinação de novos conceitos ou fenômenos. Para uma avaliação quantitativa, a determinação dos índices de impacto do trabalho científico é preferível ao número absoluto.
A avaliação do número de citações de nossos artigos, por outros autores, mostra que no global eles têm sido lidos e citados por nossos pares (vide Curriculum Vitae). Esse índice reflete a contribuição do artigo para o conhecimento científico. Por exemplo, o artigo que descreveu a localização e organização da área MT do Macaca já foi citado 66 vezes por outros autores, enquanto o trabalho sobre o orientador da cabeça do gambá, feito em colaboração com Eduardo Oswaldo-Cruz, só foi citado uma vez. Esse índice é independente da inclusão do artigo na lista bibliográfica do CURRENT OPINION IN NEUROBIOLOGY. Por exemplo, o artigo das aferências de V1 do Cebus foi citado em somente cinco trabalhos de outros autores, mas já foi incluído no CURRENT BIOLOGY.
Outro índice que reflete a relevância do trabalho científico é a incorporação de figuras ou citações em livros textos. As figuras dos trabalhos de V1 e V2 do Cebus, V2, V3 e V4 do Macaca figuram em livros-texto, didáticos e científicos (vide Curriculum Vitae).
O impacto de um trabalho científico nem sempre está relacionado ao índice de citação, e reflete a "visibilidade" do artigo e sua contribuição. Por exemplo, o trabalho recente de completamento perceptual teve impacto e aceitação na comunidade de neurofisiogistas, por mostrar evidências de propriedades dinâmicas dos campos receptores ou de plasticidade funcional no córtex visual primário de animais adultos. Esse trabalho foi publicado no Proceedings of the National Academy of Science dos Estados Unidos, o que lhe deu grande " visibilidade". Além disso, por estar nos Estados Unidos em 1991 e 1992, tive a oportunidade de apresentar esses dados em um Simpósio na reunião da Society for Neuroscience, assim como em palestras em quatro universidades americanas. Até hoje esse trabalho só foi citado por quatro outros autores em revistas indexadas no ISI, mas tem sido referenciado em vários artigos de revisão de conceitos científicos na Scientific American, na Science e em revisões na área de psicofísica. Em seu artigo na Scientific American "The Problem of Conciousness", Francis Crick & Christof Koch (1992) enfatizam a contribuição de nosso trabalho para a compreensão do fenômeno de completamento perceptual.
Charles Gilbert & Torten Wiesel (1993) em artigo na revista Ciência Hoje reconheceram a contribuição do trabalho para a compreensão do completamento perceptual. Além disso, esse trabalho tem sido citado por cientistas da área de psicofísica (Ramachandran, 1992) e da área de Filosofia da Ciência (Churchland & Ramachandran, 1993).

7. CONCLUSÃO

Nestes vinte e cinco anos de Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho procurei fazer trabalhos científicos completos dentro de um programa científico coerente, que visa a compreender o processamento da informação visual. Na graduação e pós-graduação procurei ministrar cursos de bom nível e de conteúdo atualizado.
Na carreira administrativa, procurei promover o crescimento harmonioso do Departamento e do Instituto, tendo como parâmetro principal a qualidade do trabalho científico.
Nas atividades de extensão, tenho procurado, nas Sociedades Científicas e nas Academias, colaborar em movimentos que visem a aumentar os recursos para a Ciência e Tecnologia e estabelecer, nos órgãos financiadores, comitês específicos para a área de neurociências.
Na nova fase da vida acadêmica a que estou me propondo, pretendo defender, nos órgãos colegiados e nos conselhos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, uma visão de Universidade com grande integração de seus centros e departamentos, que participa da vida científica do país, que promove ciência de qualidade e que tem um papel importante na formação de profissionais competentes para a Sociedade.

O OUTRO LADO DA MOEDA
O espírito crítico, a postura analítica e a curiosidade sempre me impeliram como cientista a propor modelos coerentes e objetivos. No entanto, como homem nunca consegui resolver algumas de minhas paixões. Ainda hoje continuo gostando tanto de fazer pesquisa quanto de ser o médico de meus amigos e colegas do Instituto de Biofísica. Além disso, adoro cozinhar e me divirto ao preparar festas para comemorar o dia-a-dia. O meu livro de receitas Cozinha Árabe ao Alcance de Todos é uma evidência de uma dualidade não resolvida entre Professor-Pesquisador e Médico-Cozinheiro.

8. BIBLIOGRAFIA CITADA

Allman, J. M. & Kaas, J. H. (1974) The organization of the second visual area (V2) in the owl monkey: a second order transformation of the visual field. Brain Res 76: 247-265.
Bender, D. B. (1981) Retinotopic organization of macaque pulvinar. J. Neurophysiol. 46: 672-693.
Churchland, P. S. & Ramachandran V. S. (1993) Filling In: Why Dennett is Wrong. Dennett and his Critics. Ed.: B. Dahlbom. Blackells, Oxford, England.
Crick, F. & Koch, C. (1992) The Problem of Consciousness. Scientific American 267:110-117.
Garfield, E. (1990) Current Comments: The Most-Cited Papers of All Time, SCI 1945-1988. Part 1B. Current Contents 8: 46-57.
Gilbert, C. D. & Wiesel, T. N. (1993) Propriedades Dinâmicas do Cortex Visual. Ciencia Hoje (no prelo).
Maguire, W. M. & Baiser, J. S. (1984) Visuotopic organization of the prelunate gyrus in rhesus monkey. J. Neurosci. 4: 1690-1704.
Olszewski, J. (1952) The Thalamus of the Macaca mulatta. An atlas for use with the stereotaxic instrument. S. Karger, Basel, Switzerland, 93p.
Ramachandran, V. S. (1992) Blind Spots. Scientific American 266: 86-91.
Petersen, S. E., Robinson, D. L. & Keys, W. (1985) Pulvinar nuclei of the behaving rhesus monkey: Visual responses and their modulation. J. Neurophysiol. 54: 207-226.
Robinson D. L. & Morris, J. D. (1987) Contributions of the pulvinar to visual spatial attention. Neuropsychologia 25: 97-105.
Zeki, S. (1969) Representation of central visual fields in prestriate cortex of monkeys. Brain Res. 14: 271-291.
Zeki, S. (1978) Uniformity and diversity of structure and function in rhesus monkey prestriate visual cortex. J. Physiol. 277: 273-290.

 

Veja algumas fotos desta história.
Veja também a história do IBCCF e do Departamento de Neurobiologia.