Ciência Hoje, 1999

Mapeando o Pensamento: Um estudo de imagens por ressonância magnética nuclear funcional

R. Gattass 1, J. Moll 2, P. P. Magalhães2, M. F. Farias 1, P. Ventura 1 e P. H. Feitosa 1

Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho /UFRJ 1

LABS Exames Complementares em Medicina 2

 

 

Cogito, ergo sum!

Penso, logo existo!

 

René Descartes - Discurso do Método, 1637 DC

A década de 90 nos Estados Unidos foi considerada pelo Congresso Americano como a década do cérebro. Com o aumento da vida média da população, a incidência e o impacto socio-econômico das doenças degenerativas e das demências aumentou de forma considerável na sociedade. Esse aumento contrasta com a quantidade de conhecimento e com o arsenal terapêutico para as doenças do sistema nervoso, quando comparada com as dos outros sistemas. Neste período, as diversas agências de fomento a pesquisa dos Estados Unidos e do mundo, prevendo os custos sociais das doenças degenerativas progressivas do sistema nervoso, lançaram programas especiais para o estudo do envelhecimento do cérebro e os distúrbios do pensamento. Doenças degenerativas progressivas que cursam com distúrbios do pensamento, como a Doença de Alzheimer, comprometem o indivíduo, desestruturam a família e tem custos econômicos altos. O indivíduo afetado sai do mercado produtivo e causa uma diminuição de produtividade de um ou mais membros da família. Dentre os programas especiais criados nos Estados Unidos (National Institutes of Mental Health) e no Japão (Human Frontier) está o do estudo da fisiologia do pensamento.

O pensamento é uma atividade mental organizada, com alto grau de liberdade, não limitada ao mundo físico. É um processo organizado de representação neural que forma um modelo mental para o planejamento, definição de estratégias, previsões e soluções de problemas. Este processo envolve a correlação e a integração de eventos críticos no tempo e no espaço. A capacidade de planejamento, de definição de estratégias e de programação de atividades, permeia praticamente todas as atividades do ser humano. Na etapa de planejamento, o indivíduo analisa possíveis interpretações e tendências para definir o melhor ou mais efetivo curso de ação. Na etapa de previsão, o indivíduo analisa uma seqüencia de eventos para antecipar o futuro; verificar a lógica e coerência dos fatos, verificar hipóteses e fazer reflexão sobre possíveis cursos de ação. Nesta etapa, o indivíduo define uma estratégia, constrói um determinado enredo e o ensaia figurativamente (mentalmente), examinando as alternativas e opções a cada fase do processo. Para a solução de problemas, o indivíduo exercita alternativas e soluções formais ou abstratas, analisando riscos e resultados. Ainda com o pensamento, o indivíduo estuda e racionaliza sobre a origem de seqüências de eventos da sociedade, do mundo e do universo. O pensamento é importante para a comunicação entre indivíduos, para análise de eventos imaginários e abstração do mundo físico. A sua natureza pode ser entre outras analítica, verbal, simbólica ou abstrata. No pensamento analítico o indivíduo coordena de forma lógica modelos mentais relacionados com o objetivo de prever ou inferir um resultado. No caso de pensamento verbal, o indivíduo vivencia o pensamento como se estivesse ouvindo sua voz. Através da linguagem, o indivíduo traduz sentimentos e relatos em palavras, num contexto semântico e sintáxico. No pensamento simbólico o indivíduo analisa um modelo formal, como uma estrutura tridimensional de uma proteína ou de um prédio, avaliando em cada ponto a perspectiva daquele ponto de visada. O pensamento musical e de relação entre línguas está incluído na categoria de pensamento simbólico. O pensamento abstrato é livre. Os modelos mentais formados neste tipo de pensamento são desvinculados do mundo físico e muitas vezes representam eventos imaginários, como o de imaginar um elefante voar. Nesse tipo de pensamento a intuição substitui a lógica na avaliação da relação entre os modelos mentais.

A correlação entre a cópia eferente nos sistemas motores e a percepção sensorial, assim como a análise dos sonhos, podem nos ajudar a entender os princípios de organização das redes neurais envolvidas na geração do pensamento. No caso do sistema motor, quando uma área do córtex envia um comando para um músculo, essa mesma área envia uma cópia desse comando (cópia eferente) para outras estruturas sensoriais e motoras que fazem os ajustes da percepção e os ajustes posturais necessários para aquele movimento. Por exemplo: quando as áreas que comandam o movimento ocular, ao comandar os músculos extrínsecos do olho para movê-los, enviam cópias desses comandos para inibir as áreas de percepção visual. Esta inibição é feita através da cópia eferente, de forma que a imagem retiniana durante o movimento rápido dos olhos não seja percebida pelo indivíduo. À semelhança dos sonhos o pensamento é livre e nele o indivíduo pode se ver como observador (da forma que vivenciamos um fato), ou como ator (numa perspectiva egocêntrica ou alocêntrica; isto é, o indivíduo pode se ver como ator de uma cena,ou como se ele estivesse ao longe).

É possível estudar o pensamento?

Na última década, o estudo do cérebro ganhou uma técnica de alta resolução espacial, capaz de produzir imagens de cortes tomográficos do cérebro com resolução de até 50 m m. Esta técnica de produção de imagens por ressonância magnética tem sido usada na clínica radiológica para o estudo da estrutura neuroanatômica do encéfalo. Mais recentemente, esta técnica evoluiu para mapear aspectos funcionais do cérebro, mais especificamente, para mapear o pensamento. A correlação de imagens por ressonância magnética durante a ação e o repouso, permitiu o desenvolvimento da ressonância magnética funcional. A atividade elétrica de redes de neurônios no neocórtex produz representações neurais que se expressam como percepções, sentimentos, atos motores, comportamentos, relógios biológicos, produção de fatores de liberação de hormônios e pensamentos. A atividade elétrica de conjuntos de neurônios que se expressam em pensamento produzem variações de propriedades magnéticas do tecido que podem ser visualizadas pela ressonância magnética funcional.

Exemplo de um Estudo de Ressonância Magnética Funcional (RMF)

Num experimento de RMF, um certo número de imagens são adquiridas durante o período de estimulação (ou de uma tarefa mental) e outro igual número é adquirido durante o período de repouso (ou de uma tarefa mental complementar). A descrição que se segue é de um experimento simples que adquire imagens durante a estimulação versus imagens durante o repouso. O mesmo paradigma poderia ser usado para uma tarefa que envolvesse por exemplo, a atenção. Neste caso, nós teríamos períodos "de estimulação" em que o voluntário estaria prestando atenção numa área da superfície corpórea comparados com períodos em que o voluntário estaria prestando atenção em uma outra região da superfície corpórea. A diferença dessas imagens estaria então relacionada a atenção e não à estimulação sensorial. Um outro exemplo de paradigma de ressonância magnética funcional seria de comparar seqüencias de ativação durante a programação e aprendizado de uma atividade motora, com o mesmo movimento já aprendido executado de forma automática. Neste caso, nós podemos tanto verificar a seqüencia de atuação durante o período de aprendizado, como identificar áreas mais relacionadas com o planejamento do ato motor do que com a sua execução.

Um experimento simples

Figura 1 - Localização das areas ativados por estimulação do pé, abdomen e mão de um experimento de ressonância funcional em um voluntário.

Neste experimento procuraremos descrever as áreas do córtex cerebral responsáveis pelo processamento da informação tátil (tato). Assim, serão programados segmentos de experimento para a estimulação de segmentos da pele da mão, do tronco e do pé (Fig.1). A visualização das áreas do córtex ativadas pela estimulação sensorial permitirá descrever a localização e a organização topográfica das áreas somestésicas (do tato) do homem.

Neste experimento serão adquiridos conjuntos de imagens (imagens de 8 fatias do cérebro a diferentes alturas) durante o período de estimulação alternadas com conjuntos de imagens durante o repouso. A Figura 1 mostra um exemplo de três fatias. Assim, em cada ciclo estimulação e repouso nós teríamos adquirido oito conjuntos de 16 imagens de oito fatias do cérebro, totalizando 128 imagens. Em um segmento do experimento a estimulação de uma região do corpo, como a dos dedos da mão seria repetido 8 vezes resultando em um conjunto de 1024 imagens para cada área da superfície corpórea estudada (Fig.2). O experimento como um todo, estuda quatro regiões da superfície corpórea incluindo regiões da mão, da face, do tronco e do pé. Os dados constituem 4096 imagens obtidas em duas condições básicas: estimulação e repouso.

Figura 2 - Esquema de estimulação tátil da mão.

Tendo adquirido imagens em duas condições torna-se importante identificarmos quais áreas do cérebro possuem variação do sinal magnético que se correlaciona com a função repouso / estimulação ( Janela time course - Fig 3). O primeiro método desenvolvido para este fim foi o da promediação (tirar média) das imagens durante a estimulação seguida da subtração da média durante o repouso. Para este método a imagem é dividida em pixels (pequenos quadrados) em que cada elemento recebe um valor de intensidade da ressonância magnética. A operação de subtração feita pixel a pixel revela pequenas áreas de sinal diferencial repouso/estimulação. A diferença de ressonância pode então ser graduada e codificada em cores e superposta à imagem estrutural da fatia estudada (fatia à direita na figura 3) . Um outro método, que nós utilizamos atualmente é o de correlação entre o sinal magnético de cada pixel e a curva de estimulação. Este método de correlação permite uma análise mais geral da correlação estimulação/repouso, além de possibilitar análise de correlações múltiplas quando o experimento é feito com mais de duas variáveis.

O método utilizado envolve a aplicação de tratamento estatístico que correlaciona a variação de intensidade de sinal em cada voxel (pixel tridimensional) da imagem com uma curva determinada de acordo com os períodos de estimulação e controle (cross-correlation analysis). O limiar de correlação utilizado será de 0,7 ou seja, todos os pixels cuja correlação é menor que 0,7 são desconsiderados. Com isso obter-se-á um mapa de todos os pixels que ultrapassavam esse coeficiente de correlação. Para aumentar a especificidade do estudo, aplicar-se-á sobre esses mapas de correlação a técnica de agrupamento (Fig.4). Assim, só as áreas nas quais três ou mais pixels vizinhos excederem o coeficiente são consideradas como ativação real. Esse tipo de procedimento descarta em grande parte pixels cuja correlação é fortuita, direcionando a análise e consolidando os resultados.

Áreas Sensoriais do Tato do Córtex do Homem

Figura 3 - Tela do NeuroAct durante um experimento de estimulação tátil.

Os resultados monstrados na Figura 1 e 4 demonstram várias áreas somestésicas no Homem. Vários focos de ativação na área S1 (Áreas 3-1-2 de Brodman) indicam a existência de mais de duas áreas somestésicas no sulco pré-central. Além dessas, duas outras áreas foram descobertas: uma denominada S2, situada na área 43 de Brodman) e outra denominada de área somestésica insular (não mostrada na Figura 4), situada no córtex insular na junção do giro pré-central com o córtex parietal.

Figura 4 - Areas somestésicas S1 e S2

Aplicações Médicas da Ressonância Funcional:

Mapeamento Pré-operatório.

Figura 5 - Quadro comparativo dos métodos de Ressonância Magnética Funcional (RMF) e Tomografia por Emissão de Pósitron (PET)

Freqüentemente a presença de lesões encefálicas, como neoplasias e malformações vasculares, são acompanhadas de distorções da anatomia cortical. Mesmo em situações em que a estrutura encontra-se preservada, a variação da localização funcional torna arriscada qualquer tentativa de atribuir com razoável grau de precisão uma determinada função a um certo sítio anatômico no cérebro. O registro da atividade elétrica da superfície cortical, durante uma neurocirurgia com o paciente consciente e executando tarefas mentais, assim como a procura das áreas motoras via estimulação cortical direta, permitem a realização de um mapeamento funcional preciso. Todavia, trata-se de técnicas invasivas, demoradas e as vezes bastante complexas, realizadas em poucos centros médicos no mundo. Na realidade, a imensa maioria das neurocirurgias é feita sem qualquer avaliação desse tipo. No caso de tumor cerebral, o cirurgião, valendo-se apenas de informações anatômicas, pondera cuidadosamente sobre a conveniência de aumentar a margem de ressecção, sob o risco de levar a severo déficit funcional ou de fazer uma ressecção sub-ótima do tumor. Nesse campo, a RMF permite a identificação da área motora e sensitiva primária com precisão milimétrica, através da execução de paradigmas simples e apropriados. Como o estudo é feito concomitantemente ao estudo anatômico convencional pela ressonância magnética, a combinação das imagens anatômicas e funcionais é direta. Isso contribui muito para a reprodutibilidade, confiabilidade e agilidade de execução do estudo. Não há necessidade de cálculo de médias entre indivíduos, o que deteriora a resolução espacial e a avaliação de particularidades funcionais em determinado indivíduo, como ocorre na tomografia por emissão de prótons (PET). Neste caso também não é preciso combinar dados obtidos por técnicas completamente diversas como nos experimentos de potenciais provocados (evoked related potentials - ERP) associados a imagens geradas por ressonância magnética. A ausência de necessidade de uso de contraste ou de substâncias radioativas confere enorme flexibilidade ao método, tornando possível a repetição do estudo de modo teoricamente ilimitado em um mesmo indivíduo. A Tabela 1 compara as características do estudo por ressonância funcional e por emissão de pósitions.

Localização pré-operatória de áreas da linguagem ( áreas eloqüentes no hemisfério dominante).

A demarcação de áreas cerebrais a partir de critérios puramente anatômicos leva ao risco de distúrbios de função motora e da linguagem assim como, provavelmente, limita o grau de ressecção em sítios considerados eloqüentes. A determinação do hemisfério cerebral dominante para a linguagem, é muitas vezes essencial para o bom planejamento pré-cirúrgico. Até recentemente a avaliação da linguagem incluía a realização de teste de Wada e sua correlação durante a operação com estimulação frontal posterior (área de Broca). O teste de Wada consiste em injetar amobarbital através da carotida do hemisfério dominate para observar a instalação do déficit de linguagem transitório. Em pacientes não cooperativos ou pediátricos, placas subdurais podem ser instaladas para mapeamento da linguagem no período pós-operatório. Avanços recentes em técnicas de imagem, especialmente em ressonância magnética, têm sido úteis na localização anatômica de tumor cerebral como também de lesões de áreas eloqüentes.

A ressonância magnética funcional tem demonstrado capacidade de localização pré-operatória mais precisa em relação ao córtex motor pré-central, às áreas eloquentes, assim como ao córtex somatosensorial primário. Assim, é certamente vantajoso o uso da RMF para o mapeamento de áreas eloqüentes, evitando os riscos, o incomodo e os custos do procedimento de Wada (Binder et al. 1995).

Localização de focos epileptiformes

A localização de focos epileptiformes é hoje baseada no estudo do eletroencefalograma (EEG) e de técnicas de imagens. A possibilidade de registro simultâneo por EEG e RMF possibilitará a obtenção de informações morfo-funcionais do encéfalo com alta resolução, temporal e espacial, e precisão inédita.

Investigação Básica em Neurociência

No campo da investigação básica, a RMF assumiu recentemente modo muito vigoroso uma posição de destaque no rol dos métodos de estudo das funções corticais e subcorticais, oferecendo especiais vantagens no que diz respeito ao modelo humano. O grande acervo de conhecimento acumulado durante muitos anos, baseado principalmente em pesquisas eletrofisiológicas e anatômicas com animais, assim como em estudos de PET e análise detalhada das conseqüências de lesões focais no homem, fornecem amplo substrato e riqueza de material que podem ser adequadamente transportados, reproduzidos e aperfeiçoados com o uso da RMF. Dentre os assuntos mais estudados destacam-se a percepção visual (percepção de forma, cor, movimento e profundidade), o movimento voluntário, o planejamento e o controle motor, a atenção, e as memórias declarativa e implícita. A grande maioria desses estudos envolveu voluntários normais. Entretanto, dados intessantes tem sido obtidos pelo estudo de pacientes acometidos de distúrbios neurológicos, como por exemplo tremor essencial, síndrome das pernas inquietas, esclerose lateral amiotrófica, afasias e outras lesões focais.

 

O Estado da Arte:- O programa Neuro-Act

Até hoje, mesmo nos centros mais avançados de imagens médicas, não há sistema de ressonância funcional on line e em tempo real. Todos os estudos da literatura utilizam paradigmas de aquisição automática, mas a etapa de processamento é feita off line. Em projeto conjunto do LABS Exames Complementares, do Tecgraf PUC-Rio e do Laboratório de Fisiologia da Cognição da UFRJ estamos desenvolvendo um sistema integrado de aquisição e apresentação de dados em fatias do cérebro e em reconstruções tridimensionais a partir destas. Este projeto, feito com recursos do LABS Exames Complementares, gerou o programa Neuro-Act (Versão 2.0) que contem proposição inovadora na área de imagem funcional do cérebro (veja Figura 3).

 

Bibliografia citada:

Belliveau JW, Kennedy DN, McKinstry RC, et al. Functional mapping of the human visual córtex by magnetic resonance imaging. Science 1991: 254:716-719.

Binder JR, Rao SM, Hammeke TA, et al. Lateralized human brain language systems demonstrated by task subtraction functional magnetic resonance imaging. Arch Neurol, vol.52, 1995; 593-601.

Ogawa S, Menon RS, Tank DW, et al. Functional brain mapping by blood oxigenation level-dependent contrast magnetic resonance imaging. Biophys J 1993; 64:803-812.

Ogawa S, Lee TM, Kay AR, et al. Brain magnetic resonance imaging with contrast dependent on blood oxigenation. Proc Natl Acad Sci USA 1990; 94:68-78.